quarta-feira, 25 de julho de 2012

Um conto sobre a noite negra da alma



Uma vez, numa noite escuríssima e trevosa, o tipo de noite em que a terra fica negra, as árvores parecem mãos retorcidas e o céu é de um azul-escuro de meia noite, um velho vinha cambaleando pela floresta, meio às cegas devido aos galhos das árvores. Os ramos arranhavam seu rosto, e ele trazia um pequeno lampião numa das mãos. A vela dentro do lampião tinha uma chama cada vez mais baixa. O homem tinha os cabelos amarelos e compridos, dentes amarelos e rachados e unhas amarelas e recurvas. Ele andava todo dobrado, e suas costas eram arredondadas como um saco de farinha. Sua pele era tão vincada que caía em folhos do seu queixo, das axilas e dos quadris. Ele se apoiava numa árvore e se forçava a avançar; depois se agarrava numa outra para avançar mais um pouco. E assim, remando desse jeito e respirando com dificuldade ele ia atravessando a floresta. Cada osso nos seus pés ardia como fogo. As corujas nas árvores piavam acompanhando o gemido das suas articulações à medida que ele seguia pelas trevas.
Muito ao longe, tremeluzia uma luzinha, um chalé, um fogo, um lar, um local de descanso; e ele se esforçava na direção daquela luz. No exato instante em que chegou à porta, ele estava tão cansado, tão exausto, que a pequena chama no seu lampião se apagou e o velho caiu porta adentro desmaiado. Dentro da casa, uma velha estava sentada diante de uma bela fogueira e ela se apressou a chegar até ele, segurou-o nos braços e o levou mais para perto do fogo. Ela o abraçou como uma mãe abraça o filho. Ela se sentou na cadeira de balanço e o embalou. E ali ficaram os dois, o pobre e frágil velhinho, apenas um saco de ossos, e a velha forte que o embalava.
— Pronto, pronto. Calma, calma. Pronto, pronto. Ela o embalou a noite inteira e, quando ainda não havia amanhecido mas estava quase chegando a hora, ele estava extremamente remoçado. Ele era agora um belo rapaz, de cabelos dourados e membros longos e fortes. Mas ela continuava a embalá-lo.
— Pronto, pronto. Calma, calma. Pronto, pronto. E quando a manhã foi se aproximando cada vez mais, o rapaz foi se transformando numa linda criancinha com cabelos dourados trançados como palha de milho. No momento exato do raiar do dia, a velha arrancou bem rápido três fios da linda cabeça da criança e os jogou nos ladrilhos. Eles fizeram um barulhinho.
Tiiiiiing! Tiiiiiiing! Tiiiiiiiiing!
E a criancinha nos seus braços desceu do seu colo e saiu correndo para a porta. Voltando o rosto por um instante para a velha, o menino deu um sorriso deslumbrante, virou-se e saiu voando para o céu para se tornar o brilhante sol da manhã.
Os três cabelos de ouro (Clarissa Pinkola Estes)

sábado, 14 de julho de 2012

Noites de chuva



Pessoas saem na noite. Amontoam-se em pubs à procura louca de sensações ancestrais. Copulam com os olhos, com os corpos, ao som das guitarras, rugindo em ecos infinitos e profundos.
Tantos olhos na noite, vagos, atentos, caçando... Até os seus.
Os meus próprios.
O vocalista entoa ais longos e a guitarra chora, tornando tudo mais dramático na confusão de vozes, toques, cheiros.
Uma mão encontra a minha, quente na noite fria, nem preciso ver para saber.
E saímos dali para a rua sabática espelhada no asfalto. Espelho espalha os risos, o azul da fumaça dos cigarros.
Você sorri e cai uma estrela no céu escuro como chumbo.
Doce, doce a cerveja do teu hálito.
Passam pessoas vestidas de preto falando todas ao mesmo tempo e abafam o som dos teus pensamentos. Você me dizia... o que?
Longe, no fim do espelho espalhado rua abaixo, algum românico houve Peral Jam.
Minhas mãos são suas mãos.
Somos levados pelo som dos corações e desaba uma chuva fria nos nossos corpos quentes.
Pear Jam.. Pear Jam tocando Landslide enquanto corremos em direção a uma nova chance...

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Bolo de maçã com canela

Coloquei também passas pra ficar ainda mais gostoso!

Ingredientes
1 1/3 xícaras de óleo vegetal (uso o de canola)
3 xícaras de farinha de trigo
1 colher de sopa de canela em pó
1 colher de chá de bicarbonato de sódio
1 colher de chá de sal
2 xícaras de açúcar
3 ovos
3 a 4 maçãs (a receita pede das Granny Smith, mas eu já usei gala e fuji), descascadas, sem sementes e cortadas em cubinhos.
1 xícara de nozes ou pecãs (opcional)
1 colher de chá de essência de baunilha (nunca uso)


Preaqueça o forno a 180°C. Unte com manteiga e polvilhe com farinha de trigo uma forma grande de buraco no meio, ou uma redonda de 25cm.
Peneira numa tigela grande a farinha, canela, bicarbonato e sal. Misture bem e reserve.
Na tigela da batedeira, coloque o óleo, os ovos e o açúcar. Bata em velocidade alta até ficar amarelo claro.
Com a batedeira em velocidade média, vá acrescentando a mistura de farinha gradualmente, e abata somente até ficar homogêneo.
Junte as maçãs picadas e as nozes, e misture com uma colher grande ou espátula. Junte a baunilha e mexa bem.
Transfira a massa para a forma preparada e asse até que um palito saia seco quando espetado no centro do bolo (de 50 minutos a 1 hora).
Retire do forno e deixe amornar. Desenforme e vire o bolo de cabeça para cima. Deixe esfriar completamente para servir.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Pedra Furada: um presente do Mar


Sábado fui desfrutar de um paraíso natural que ainda resiste em meio à especulação imobiliária que toma conta de Natal. Chamamos de Prainha, uma pequena enseada pontilhada e rendilhada de pedras, e banhada por um doce e cálido mar de um lado e pela exuberância de uma encosta protegida por pequena faixa de mata virgem. Não há viva’lma, como dizia minha avó, a quebrar a magia que ainda vive naquelas pedras, naquele local onde se pode, por horas a fio, ficar contemplando a mansidão de um lugar entre os lugares.
E lá estava eu, sentindo as emanações poderosas da Mãe Natureza, mirando o passeio lento das ondas pela areia fina, sentindo o vento cantar na mata da encosta, quando um belo lagarto verde escuro, lustroso como uma enguia, sinuosamente saiu da mata em direção a aglomerado de pedras. Ele seguiu, olhando para mim e meu amigo, e ponderando nosso grau de ameaça por alguns instantes, percebeu que menor ameaça não podia haver no mundo. Estando nós dois de respiração suspensa, maravilhados com o que consideramos um magnífico presente! Então seguiu, calmamente seu roteiro prévio como se eu e meu amigo fossemos como as pedras da praia, nem mesmo como as árvores que se mexiam frente a força dos ventos.
Que alegria há em tão singela aparição! Como estamos acostumados às grandezas artificiais de uma vida que supostamente é essa aí mesmo. Amo a natureza por sua sutileza. Recado veio, minutos depois, quando eu estava tranquilamente deitada na areia, sob a sombra de uma árvore de cheiro. Num pequeno sussurro ao pé do meu ouvido, uma lembrança de algo que não sei bem o que moveu meu impulso de me levantar e seguir rumo às pedras escuras. Chapinhei feliz nas poças que se formavam, sentindo a quentura do sol nas minhas costas e eis que dentro de uma das poças, uma pedra me chamou a atenção. Para minha surpresa, apesar de seu tamanho ela facilmente veio quando a removi. É uma pedra com um furo no meio! Uma pedra mágica! Um presente maravilhoso da Deusa!
Não preciso dizer o quanto voltei feliz desse passeio ao paraíso da Prainha. A pedra encontra-se devidamente colocada em posição de destaque no meu altar, claro. E eu, feliz da vida, posso ver melhor agora o que via antes.
A pedra que me achou.

Olhando por ela.


Sobre a magia das pedras furadas.
As pedras furadas são consideradas tradicionalmente como mágicas, presentes do mar. Podem ser usadas penduradas acima do leito para proteção, bem como se forem pequenas levadas ao pescoço com um cordão.
As pedras com um orifício natural são associadas com a Deusa e com as fadas. Podem ser portais para o Outro Mundo e na Tradição Oculta dizem que uma pessoa pode ver fadas ao observar atentamente com o olho esquerdo através do buraco da pedra.
Ao assobiar pela abertura convoca-se as hostes dos mundos elementais, também espíritos, segundo o folclore europeu. Pode ainda ser tocada como um sino no ritual ou derramar-se por sua abertura libações de leite e vinho (neste caso a pedra é usada apenas para esse fim ritual, pois pode servir de oráculo revificado)*. Na bruxaria italiana, acredita-se que as pedras furadas podem ser habitações de espíritos que ajudariam a bruxa em seus trabalhos mágicos.
A pedra furada é considerada também Pedra da Deusa, sua representação fenomêmica, consubstanciada na mimese da Natureza, na antromorfização, ou seja, por assemelhar-se ao corpo feminino, sendo o buraco a abertura do ventre da Grande Mãe Neolítica.
Mas, no caso da pedra furada marinha essa representação recebe o, a meu ver, magnífico poder do mar primordial, sendo ela uma obra, uma passagem natural de um a outro mundo, formada pela própria ação da água oceânica. E toda a simbologia do mar como Mar Amargo, inconsciente e berço da vida, toma forma na matéria agregada de vida que é a rocha marinha. Ela é viva, pulsante, vibrante e antiga.
Assim como as conchas, as pedras furadas podem e devem ser ofertadas como oferendas para a Grande Mãe.
Podem também ser usadas (e aí uma vez usada para esse fim, não deve ser para outros) para banhos de purificação. A pedra furada é colocada na água junto com sal marinho.

*Esse conhecimento me foi passado por outros meios, não literários.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

O Credo das Bruxas



Ouça agora a palavra das Bruxas, os segredos que na noite escondemos. 
Quando a obscuridade era caminho e destino, e que agora à luz nós trazemos. 
Conhecendo a essência profunda, dos mistérios da Água e do Fogo, e da Terra e do Ar que circunda, manteve silêncio o nosso povo. 
O eterno renascimento da Natureza, a passagem do Inverno e da Primavera, compartilhamos com o Universo da vida, que num Círculo Mágico se alegra. 
Quatro vezes por ano somos vistas, no retorno dos grandes Sabbats, no antigo Halloween e em Beltane, ou dançando em Imbolc e Lammas. 
Dia e noite em tempo iguais vão estar, ou o Sol bem mais perto ou longe de nós, quando, mais uma vez, Bruxas a festejar, Ostara, Mabon, Litha ou Yule saudar. 
Treze Luas de prata cada ano tem, e treze são os Covens também, treze vezes dançar nos Esbaths com alegria, para saudar a cada precioso ano e dia. 
De um século à outro persiste o poder, que através das eras tem sido levado, transmitido sempre entre homem e mulher, desde o princípio de todo o passado. 
Quando o círculo mágico for desenhado, do poder conferido a algum instrumento, seu compasso será a união entre os mundos, na terra das sombras daquele momento. 
O mundo comum não deve saber, e o mundo do além também não dirá, que o maior dos Deuses se faz conhecer, e a grande Magia ali se realizará. 
Na Natureza, são dois os poderes, com formas e forças sagradas, nesse templo, são dos os pilares, que protegem e guardam a entrada. 
E fazer o que queres será o desafio, como amar a um amor que a ninguém vá magoar, essa única regra seguimos à fio, para a Magia dos antigos se manifestar. 
Oito palavras o credo das Bruxas enseja: sem prejudicar a ninguém, faça o que você desejar ..."

quinta-feira, 17 de maio de 2012

A palavra/poesia liberta/a/dor/ahhh



Tenho corrido com os lobos há muitos anos, talvez há muitas vidas, mas nunca percebi que corria para longe. Também corri desesperadamente atrás de algo, de alguém... E crendo na complexidade das coisas, confundi tudo com magia. Corri por achar que é a ação quem determina o tempo e a resolução das coisas.
Corri sempre solitária... e isso é péssimo para uma loba.
Desesperadamente corri, sem direção certa – ela existe? – que perdi no caminho meu coração, tão selvagem.
E foi doando demais, tentando demais, acelerando o que talvez seja tão lento... que mesmo o tempo não saiba quando.
Tudo por amor. Pelo amor. O que é o amor?
Onde se confundem os desejos e imagens do amor e o amor, ser tão fugidio, Eros...
Trilhei muitas vezes – pois parece que uma só vez não basta – o velho caminho da Sacerdotisa, e fui Perséfone nos braços do inferno interior. Acho que ainda caminho...
Mas achei pouco, já ser tão penoso ser Atalanta, que busquei erotizar (ironizar) a vida. E chamei um adversário para Hades. Eis, maldito/querido companheiro o amor por teu oponente! Este que em mim devias julgar suprimido, negado, inadvertido, enfim impossível.
E percorri o caminho de Psiquê duas vezes, por que uma só não basta. E queimei a pele de Eros com a fuligem da minha vela, maculei suas belas asas brancas com meus pés pretos infernais. Eu fui eu demais!
E a danação da curiosa/ingênua/amante foi ouvir que não sei amar. Eu que enfiei os pés pelo coração, a alma pelas mãos, eu que me...
Agora olho a trilha bifurcada e não sei para onde correr, e por não o saber, quem diria, estaquei a passos tão lentos que não me movo nada além dos meus pensamentos. Eu que fui asa de beija-flor, hoje espero com olhos tristes e profundos num toco qualquer da estrada, que passe a Velha Roda girando seja para qualquer lado, desde que eu não precise correr tanto, mais, mais, mais...

sexta-feira, 6 de abril de 2012

A Deusa de dez mil nomes - Parte II*

A dádiva da Deusa

E qual seria a dádiva da Deusa? Este presente não se restringe mais à terra nem ao planeta, mas a toda e qualquer forma de vida e de morte. Incluem-se aí as dádivas tanto microcósmicas quanto macrocósmicas. O conhecido e não conhecido, o visível e o invisível. Para além do caráter criador humano, o caráter criador universal. Sem a potência feminina não há criação. Como Campbell (1999) observou, na Índia a criação é simbolizada pela união entre o lingam e a yoni, o falo e a vagina, o Deus e a Deusa, a potencia masculina, geradora, e a potencia feminina, manifestadora.
Como você vê, o mistério sexual, na Índia, como em quase todo o mundo, é um mistério sagrado. É o mistério da geração da vida. O ato de gerar uma criança é um ato cósmico e deve ser entendido como sagrado. Por isso, o símbolo que mais claramente representa o mistério do despejar da energia da vida, no campo do tempo, é do lingam e a yoni, os poderes masculino e feminino, em conjunção criativa (CAMPBELL, 1999, p. 179).
Compreendemos que a dádiva da Deusa é a vida, assim como também é a morte, pois ambas são intrínsecas. A vida se alimenta da morte. O entendimento desse postulado fica cada vez mais evidente frente às descobertas científicas atuais como as teorias da física quântica, o princípio da incerteza, a teoria do caos e dos campos morfogenéticos. A marcha da humanidade para uma visão não determinista do mundo abrirá novas possibilidades de evolução e aceitação da morte como um processo natural e tornará mais fácil o entendimento de que todo sistema vivo precisa matar para se alimentar. A partir daí, aspectos da Deusa destruidora serão reabilitados, assim como já estão sendo seus aspectos de criadora.
Kali Ma por Vineet Agaarwal
O culto à Deusa sobreviveu a períodos históricos e suas adversidades na figura da Magna Mater dos Bálcãs e do mundo grego, por exemplo. E vive em continuidade sob as suas múltiplas formas e inúmeros nomes. Riane Eisler em seu livro O Cálice e a Espada (1989) afirma que é possível perceber esta continuidade religiosa em deidades tão conhecidas quanto: Ísis, Nut e Maat, no Egito; Isthar, Astarte e Lilith, no Crescente Fértil; Deméter, Core e Hera, na Grécia; e Atárgatis, Ceres e Cibele, em Roma.
Mesmo depois, em sua própria herança judaico-cristã, ainda podemos identificá-las na Rainha dos Céus, cujos arvoredos são queimados na Bíblia, na Shekhina da tradição cabalística hebraica e na Virgem Maria Católica, a Sagrada Mãe de Deus (EISLER, 1989, p. 33).
Uma das explicações claras para essa continuidade da Deusa ao longo da trajetória humana, mesmo que em alguns momentos Ela pareça não estar presente no imaginário religioso da humanidade, é encontrada na filosofia das religiões consagradas à Deusa na Índia, onde segundo Campbell, a simbologia Dela é dominante até hoje. Maya como é chamado o divino feminino, é o espaço e o tempo, e o mistério para além Dela é o mistério para além dos pares de opostos.
Assim, não é masculina nem feminina. Nem é nem deixa de ser. Mas tudo está dentro dela, de modo que os deuses são seus filhos. Tudo que você vê, tudo aquilo em que possa pensar, é produto da Deusa (CAMPBELL, 1999, p. 177).
Sua continuidade aparece em função dos estágios psíquicos humanos que Campbell afirma serem melhor explicados pelo sistema existente na
Os sete principais centros energéticos, sendo o último
o do topo da cabeça (chákra da coroa).
 Índia, que descreve os estágios do desenvolvimento espiritual humano. Esse sistema considera que ao longo da coluna vertebral existem sete centros de energia, chamados de Chakras, e eles são os estágios pelos quais passa a consciência do homem rumo à expansão. Tomando os quatro primeiros é possível explicar a metáfora do nascimento virginal. O primeiro chakra localiza-se entre o reto e o aparelho reprodutor e se refere aos processos de sustentação da vida, entre eles o da alimentação. Segundo Campbell ele seria representado pela serpente em seu aspecto de devoradora e renovadora da vida.
O segundo chakra é representado pelo aparelho reprodutor, significando a necessidade da procriação; o chakra logo acima se localiza na altura do umbigo e concentra a vontade de poder, domínio e realização, como também o desejo de dominar, conquistar e subjugar os outros. Segundo o sistema hindu, essas três funções: alimentação, procriação e domínio/conquista, são todas de instinto animal, e seus centros estão localizados na bacia pélvica. O quarto centro se encontra na altura do coração, onde está a abertura para a compaixão. Passa-se assim, a partir desse ponto, do campo da ação animal para o campo da ação propriamente humana e espiritual.
E para cada um desses quatro centros é imaginada uma forma simbólica. Na base, por exemplo, onde se encontra o primeiro centro, o símbolo é o do lingam e a yoni, os órgãos masculino e feminino, em conjunção. E no centro do coração aparecem outra vez o lingam e a yoni, ou seja, os órgãos masculino e feminino, em conjunção, mas aqui representados em dourado, para simbolizar o nascimento virginal, quer dizer, o nascimento do homem espiritual a partir do homem animal (CAMPBELL, 1999, p. 184).
Desse modo, o nascimento virginal tanto do homem quanto de um deus imbuído de compaixão se dá no nível do coração, como assim foi com Buda, nascido do flanco de sua mãe (entendido como do chakra cardíaco) e com Cristo, nascido de uma virgem. Metáforas para o nascimento espiritual de ambos. Segundo Campbell, os três chakras inferiores não devem por isso ser entendidos como obstáculos a serem recusados, mas transcendidos, subordinados ao coração.
O nível do coração é o espaço de ação da compaixão, mas também da maternidade, por isso bem representado por Maria, Mãe de Deus, por Ísis com seu filho Hórus, Deméter e sua filha Core, e todas as Deusas Mães da mitologia, que se doam sempre em favor do outro, que sofrem com o outro, significado da compaixão. No entanto, nos lembra Campbell, antes da imagem bíblica da Virgem Maria, temos a imagem mítica de Ísis amamentando Hórus, fonte da qual os padres do cristianismo beberam a metáfora da Madona.
Também Lúcio Apuleio (apud CAMPEBLL, p. 189), em seu célebre livro O Asno de Ouro, escrito no século II a.C., faz uma das mais famosas reverências a Ísis como a Deusa que encarna todas as formas do feminino divino. O protagonista da trama é transformado em asno graças as suas aventuras penosas e humilhantes e só consegue voltar a sua forma humana através de uma bela prece dirigida à Deusa Ísis e depois se convertendo ao seu culto.
Dessa forma, o herói do romance de Apuleio sofre um nascimento espiritual através da contemplação da Deusa. Foi a Dádiva da Deusa a ele concedida. De acordo com Campbell esse renascimento também pode se dar através dos poderes do divino masculino, no entanto, “nesse sistema de símbolos, a mulher se torna o princípio regenerador” (1999, p. 190).
A Dádiva da deusa é aquela recompensa que é dada ao herói não só ao final da sua jornada mas ao longo dela. De acordo com Campbell em O herói de mil faces (1995), a mulher representa na linguagem da mitologia a totalidade do que pode ser conhecido e o herói é aquele que aprende. Na jornada do herói, à medida que ele progride na lenta iniciação que é a vida, conhece as várias formas da Deusa.
(...) ela jamais pode ser maior que ele, embora sempre seja capaz de prometer mais do que ele já é capaz de compreender. Ela o atrai e guia e lhe pede que rompa os grilhões que o prendem. E se ele puder alcançar-lhe a importância, os dois, o sujeito do conhecimento e seu objeto, serão libertados de todas as limitações (p. 117).
Isis de todos os nomes e descrita por Apuleius.
Este encontro com a Deusa, encarnada em toda mulher, como afirma Campbell (1995), é o teste final do talento de que o herói é dotado para obter a benção do amor, a caridade, a compaixão, que é a própria vida, vivida como o invólucro da eternidade. É preciso que o herói seja dotado daquilo que os trovadores e menestréis chamavam de “coração gentil”. A Deusa não pode ser compreendida, nem alcançada, nem servida por um desejo animal, nem pela repulsa, nem pelo simples desespero. “(...) mas, apenas pela gentileza: awaré (“simpatia gentil”), eis o seu nome na poesia cortesã do Japão dos séculos X-XII” (CAMPBELL, 1995, p. 118)[1].
E assim Ísis atendendo às preces gentis e devotadas do personagem asno de Apuleio lhe diz alguns dos dez mil nomes pelos quais é chamada e dá-lhe a sua maior dádiva. E em honra Dela finalizo reproduzindo esta bela passagem:
‘Eis me aqui Lúcio. Eu vim! Teus lamentos e tuas preces comoveram-me e vim socorrer-te. Sou a mãe natural de todas as coisas, senhora e governante de todos os elementos, progenitora primordial dos mundos, chefe dos poderes divinos, rainha de todos que estão nos infernos, a principal dentre todos os que habitam os céus, manifestação absoluta, sob uma forma única, de todos os deuses e deusas (deorum dearum-que facies uniformis). Minha vontade dispõe sobre os planetas do céu, sobre todos os ventos dos mares e sobre o lamentável silêncio do inferno. Minha pessoa e minha divindade são adoradas por todo o mundo, de maneiras diversas, em costumes variáveis e sob diferentes nomes. Atento! Os frígios que foram os primeiros a dentre os homens, chamam-me Pessinunte, de ‘A Mãe dos Deuses’; os atenienses, que brotaram de seu próprio solo, Minerva de Cécrops; os cipriotas, cercados pelo mar, dizem-me Vênus da cidade de Pafo; os cretenses, que portam flechas, chamam-me Diana de Dicte; os sicilianos, que falam três línguas, Prosérpina Infernal; os que obedeciam o culto de Elêusis, adoravam-me como Ceres, sua antiga deusa; outros ainda me diziam Juno, Belone, Hécate; outros Ranúsia. Ambos os tipos de etíopes, que moram no Oriente e que são iluminados pelos matutinos raios solares, bem como os egípcios, os quais são excelentes em todo tipo de doutrina arcaica, estes estão acostumados, por força de suas cerimônias adequadas, a cultuar-me sob meu verdadeiro nome – A Rainha Ísis. Atento! Eis-me aqui a apiedar-me da tua sina e de tua tribulação. Vim para favorecer-te e ajudar-te; cessa teu pranto e tuas lamentações; afugenta a tristeza, pois este é o dia da salvação determinada por minha providência’ (APULEIO apud GRAVES, 2003, p. 93).



 Referências
ABRAHAM, Ralph; McKENA, Terence; SHELDRAKE, Rupert. Caos, criatividade e o retorno do sagrado: triálogos nas fronteiras do Ocidente. Trad.: Newton R. Eichenberg. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1994.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad.: Carlos F. Moisés. São Paulo: Palas Atena, 1990.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces.Trad.: Adail U. Sobral. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1995.
ELIADE, Mircea. Tratado de historia das religiões. Trad.: Fernando Tomaz e Matália Nunes. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
EISLER, Riane. O cálice e a espada: nossa história, nosso futuro. Trad.: Terezinha Santos. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
GRAVES, Robert. A Deusa Branca: uma gramática histórica do mito poético. Trad.: Bento de Lima. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.


Sugestão de site:
http://www.esotericarchives.com/kircher/goddess.htm

* Por Luciana Carlos Celestino.

[1] Grifo do autor.

terça-feira, 3 de abril de 2012

A Deusa de dez mil nomes - Parte I


“Eu sou tudo que foi,
tudo que é e tudo o que será,
e meu véu, nenhum mortal ainda o suspendeu”.
Inscrição no santuário da Deusa Ísis[1].


A Deusa-Mãe do Egeu
A primeira associação que se fez da Deusa na história das religiões no Ocidente foi com a imagem da Mãe. A Mãe-Terra para os povos caçadores-coletores e, posteriormente, a Mãe-Terra esposa do Pai-Céu para os povos agricultores (ELIADE, 1998). Segundo Joseph Campbell (1999) a floração básica da civilização ocidental ocorreu nos grandes vales dos rios Nilo, Tigre-Eufrates, Indo, e posteriormente Ganges[2] onde a Deusa era soberana. A partir do quarto milênio antes de Cristo os indo-europeus começaram a descer do norte e do sul, destruindo cidades da noite para o dia. Neste processo trouxeram sua mitologia de orientação masculina e guerreira que foi sendo imposta através da invasão e da guerra aos povos que estavam ao longo do seu trajeto. E a Deusa foi relegada a segundo plano.
Os invasores semitas eram pastores de cabras e ovelhas, os indo-europeus eram pastores de gado. Ambos primitivamente, eram caçadores, de modo que também eram assassinos, nômades e adoradores de deuses guerreiros, “lançadores de raios, como Zeus ou Jeová” (CAMPBELL, 1999, p. 180). O mito de Tiamat nada mais é do que a narrativa metafórica desse processo. Tiamat, o Abismo, a Fonte inexaurível é morta por Marduk, o deus babilônico de então, e seu corpo despedaçado passa a enfeitar os céus. Segundo Campbell a proeza de Marduk se constitui, na verdade, num ato de suprema revogação, pois na mitologia da Deusa ela própria já é o universo, os céus. “Mas o mito de orientação masculina se impõe, e ele se torna, aparentemente, o criador[3]” (1999, p.180).
No processo de imposição dos mitos indo-europeus sobre os dos povos das margens do Egeu, o também mitólogo Robert Graves (2003), acredita que há uma estreita conexão entre os primitivos mitos dos hebreus, dos gregos e dos celtas que consiste no fato de que todas as três raças foram civilizadas pelo mesmo povo do mar do Egeu, que não só as conquistou como as absorveu. Graves chama atenção (p. 81):
Isto não é meramente de interesse arqueológico, pois o apelo popular do catolicismo moderno reside, apesar da Trindade patriarcal e do sacerdócio exclusivamente masculino, na tradição religiosa egéia da Mãe e do Filho, à qual preferiu inclinar-se lentamente mais do que a seus elementos aramaicos ou indo-europeus do “deus-guerreiro”[4].
Campbell, por sua vez, cita um Upanixade de cerca do século VII a.C., época exata em que a Deusa começava a surgir também na região do Egeu. Este texto sagrado narra o encontro surpreendente dos deuses védicos com uma coisa estranha e amorfa no caminho, uma espécie de neblina fumarenta, como passa a narrar o próprio Campbell (1990, p. 191):
“O que é isso?” Nenhum deles sabe o que poderia ser. Então um deles sugere: “vou descobrir o que é”. Esse, então, se dirige àquela coisa esfumaçada e diz: “Eu sou Agni, o Senhor do Fogo; posso queimar qualquer coisa. Quem é você?” E do meio da espessa neblina sai voando um pedaço de palha, que cai no chão, e uma voz diz: “Vamos ver você queimar isso”. Agni descobre que não é capaz de fazê-lo. Ele então retorna até onde estão os outros deuses e diz: “Isso sem dúvida é muito estranho!” “Bem, então”, diz o Senhor do Vento, “deixe-me tentar”. Ele vai e a cena se repete. “Eu sou Vayu, Senhor do Vento, posso arrastar qualquer coisa”. Outra vez uma palha é jogada ao chão. “Vamos ver se você pode arrastar isso”. Ele não consegue, e retorna. Então Indra, o maior dos deuses védicos, se aproxima, mas, ao chegar perto, a aparição se desfaz e em seu lugar surge uma mulher, uma bela e misteriosa mulher, que se dirige aos deuses, revelando-lhes o mistério que fundamenta a eles próprios. “Este é o supremo mistério de todo o ser”, ela lhes diz, “do qual vocês próprios receberam os seus poderes. E Ele pode pôr em ação os seus poderes ou neutralizá-los, conforme deseje”. O nome hindu para esse Ser de todos os seres é Brahman, que é uma palavra neutra, nem masculina, nem feminina. E o nome hindu para essa mulher é Maya-Shakti-Devi, ‘Deusa Doadora de Vida e Mãe de Todas as Formas’. E nesse Upanixade ela aparece como aquela que ensina aos deuses védicos sobre o fundamento e a fonte suprema do seu próprio ser e dos seus próprios poderes.
Essa visão da Deusa como uma mulher doadora de formas e que sabe de onde elas provêm, ou seja, daquilo que está além do feminino ou do masculino, além do ser e do não-ser, do que é e ao mesmo tempo não é, que está além de todas as categorias da mente e do pensamento é completamente atual. Milênios de patriarcado e séculos de desenvolvimento tecnológico, não destruíram o aspecto essencial da divindade que surgiu às margens do Egeu. Campbell enxerga, diante das descobertas científicas, que a mitologia da Deusa tanto não morreu como esta voltando. Que ela não perdeu seu significado original, mas ganhou uma nova perspectiva mais abrangente.

A Deusa como matriz geradora de formas
A Deusa passa a ser compreendida não mais como apenas a Mãe-Terra que produz a partir da matéria, mas como a própria origem de tudo, a matriz, o campo que produz tudo, como no texto Upanixade. Segundo Campbell, as descobertas científicas não mataram o mito. “Ah, eu acho que o mito esta voltando. Há um jovem cientista, hoje, que esta usando a expressão ‘campo morfogenético’, o campo que produz formas. Eis o que a Deusa é, o campo que produz formas” (CAMPBELL, p. 179, 1990).
O jovem cientista ao qual Campbell se refere é Rupert Sheldrake, biólogo que sugere a existência de uma memória inerente a todo organismo, que ele chama de campo mórfico ou morfogenético. Um padrão de repetição que ocorre à medida que o tempo passa e que cada tipo de organismo forma uma memória específica, coletiva e cumulativa. De acordo com Sheldrake (1994), as regularidades da natureza são, dessa forma, habituais e as coisas são como sempre foram, o universo, por sua vez, é um sistema de hábitos em evolução. “Uma coisa que está clara”, diz Sheldrake, “é o fato de que o caos é feminino, e que a criação a partir do caos se parece com a criação a partir do útero, uma potencialidade que tudo contém e que emerge da escuridão” (p.73).

Por Luciana Carlos Celestino 
Referências
ABRAHAM, Ralph; McKENA, Terence; SHELDRAKE, Rupert. Caos, criatividade e o retorno do sagrado: triálogos nas fronteiras do Ocidente. Trad.: Newton R. Eichenberg. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1994.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad.: Carlos F. Moisés. São Paulo: Palas Atena, 1990.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces.Trad.: Adail U. Sobral. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1995.
ELIADE, Mircea. Tratado de historia das religiões. Trad.: Fernando Tomaz e Matália Nunes. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
EISLER, Riane. O cálice e a espada: nossa história, nosso futuro. Trad.: Terezinha Santos. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
GRAVES, Robert. A Deusa Branca: uma gramática histórica do mito poético. Trad.: Bento de Lima. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.



[1] Citado por Plutarco em sua obra Ísis et Osíris.
[2] Cujo nome deriva de Ganga, uma deusa. (CAMPBELL, 1999, p. 179)
[3] Grifo do autor.
[4] Grifo do autor.

domingo, 4 de março de 2012

O Eu-sombra e os Outros


Toda hora estamos todos ouvindo falar em trabalhar a sombra. Especialmente na Bruxaria, que tem por aspecto mais importante esse trabalho. Muitos a definem por essa busca de equilíbrio, ou tensão, entre a luz e a sombra. Para cada um, no entanto, definir a bruxaria é um caso particular e pessoal, assim como o trabalho da Arte deve ser. Mas, o que é a sombra? Jung, autor dessa definição do lado obscuro e negado do Ego (do Eu), a emprega como relativa ao que de inconsciente existe na alma humana, seu lado negado acima de tudo, o que para a personalidade é seu lado feio e terrível. Na busca da Individuação Jung diz que o trabalho com a sombra é extremamente importante.
Mas, para nós bruxos o que é a sombra? Citei a definição de Jung, primeiro por ter sido ele seu empregador mais frente em seus estudos, segundo porque é a definição de sombra que mais se aproxima da nossa. Sombra é, portanto, aquela nossa face que não se reflete em nós mesmos. E, se reflete até, porém na maioria das vezes não a observamos. Como quando o sol está a pino sobre nossas cabeças, nossa sombra real se posta sob nossos pés e acreditamos que ela não existe. Essa é uma ótima alegoria para esse fato. Luz, ou a crença dela em demasia, torna mais escondida ainda a sombra. Porém ela continua lá, existindo. A sombra é nosso lado negado como quer Jung, mas é também nosso lado escondido, não só de nós mesmos como dos que nos cercam. Saber o que é a sombra não é, afinal, tão difícil. Faz-se mais trabalhoso enxergá-la, esse ser da noite e do escuro, assim como aceitá-la e trabalhar com ela.
Enxergá-la é um fato curioso. Curioso porque, na minha opinião, é o único processo em que se pode realmente contar com os Outros, mesmo que apenas superficialmente. Podemos nos abrir para as críticas, para os apontamentos e a partir daí iniciar nosso trabalho. De fato, nesse caso os Outros terão papel até certo ponto ativo, porque nos processos seguintes esse papel é passivo, como veremos.
Se abertos estivermos a ouvir e ver pelos olhos dos outros, estaremos dando o primeiro passo no trabalho da sombra. Ora, os outros podem vê-la projetando-se, de certa forma melhor que nós. Ë muito engraçado ver alguém tentar alcançar sua própria sombra correndo até ela como um louco, como o louco do tarô. Ele nunca a alcançará de fato, pois que ela o acompanha sempre. Ela está ali, não há o que buscar. A sombra é você, seu reflexo no material. O reflexo que seu corpo, iluminado pela luz, lança nos sólidos. A sombra é seu movimento, sua parte inconsciente e seu duplo aspecto tosco, caricato, mas é você!
Sabendo que ela existe de fato e que o trabalho a ser feito não é de combatê-la ou elimina-la, como alguns podem pensar, sabemos agora que o trabalho com a sombra é algo mais sutil. Eu diria que o elemento de trabalho da sombra não é externo, como o corpo físico ou os corpos ao seu redor, diria que ele é interior. Diria que a luz da Lua Esotérica é seu elemento, o feminino é seu regente. Explico. Se observarmos a carta da força, no baralho de Marselha, temos lá uma mulher que delicadamente segura um leão pela boca. Ao contrário do que o título da carta pode sugerir, ela não lhe aplica uma força física, há ali em ação uma força muito mais sutil. E o fato de ser uma mulher a aplicá-la não é a toa. Esta mulher é a representação do feminino em ação, do feminino que existe em cada um de nós independente de nosso sexo. A força que devemos utilizar no trabalho com nossa fera interior, nossa sombra, é esta. É a força da passividade ativa. Aplicando-lhe uma força que não força.
No trabalho da sombra isso se traduz como uma domesticação dos “defeitos”, de uma convivência passiva e proveitosa de nossas forças internas. Nossa máscara, nossa persona como diria Jung, não é forjada apenas das luzes do sol, da lua e das estrelas, ela também se compões do obscuro crepúsculo, da imensidão do cosmo, do fundo escuro do mar. Ela, nossa máscara, é uma Deusa caprichosa e indomável, ou convivemos com ela, MOLDANDO-A, na sua maleabilidade divina, ou partimo-la em mil pedaços e fazemos outra para nós. Essa atitude, embora radical, muitas vezes se faz necessária. Como toda Deusa, nossa máscara não admite meios termos. As faces do grande diamante brilham todas ao mesmo tempo, mas cada uma reflete por sua vez. Isso torna muito difícil enxergarmos em nós nossa divindade. Nossa máscara é nossa chave para a evolução. Ora, o que já temos de correto e luminoso (É difícil não usar de dicotomia) já é em si divino, porque o que há em nós de obscuro e maléfico não o seria?
No entanto, é mister deixar claro que, não é porque a sombra e sua dicotomia - o mal, seja parte da Grande Divindade que esta face não precise de uns ajustes. Moldar o bem e moldar o mal de nossa máscara é um processo infinito, pois movendo a sombra movemos a luz.
Assim, aceitando esse fato, o de que existe em cada um de nós e em tudo uma sombra que o delineia, é preciso usar esse poder para elevar-nos em nosso caminho. Aqui o trabalho com a sombra ainda se faz através dos Outros, esses seres de energia passiva. Porque os outros são passivos?, poderia perguntar você, já que eles a toda hora se zangam com nossas falhas. Eu te responderia que a reação é mais que natural, é um lei da física. Os Outros são na realidade passivos porque são nossos espelhos. É nos Outros que nos enxergamos, sem os Outros não seriamos Nós. A relação Eu-Outro é muito debatida no meio psicanalítico, mas ela é um fato. Nossa sombra se projeta a nossas costas ante a luz do outro, mas ele também tem sombra, e esse jogo torna a experiência fascinante. Quanto mais luz você for, mas ofuscado se sentirá seu espelho e menos você se verá. Mistério do Caminho...

Entretanto, trabalhar com a sombra não é esperar que os Outros resolvam seus problemas. Trabalhar com a sombra envolve a maior força do universo, aquela que atrai, une, gera e concretiza: o amor. AH! Você poderia dizer. Então é só amar ao próximo! Não é só isso. Amar ao próximo sem amar a si mesmo não é algo que funcione bem. Só podemos amar os Outros quando pudermos amar a nós mesmos. Porque assim veremos nos espelhos, que são os Outros, todo o amor que temos. E sendo nós mesmos espelhos para os Outros, refletiremos esse amor pelo infinito das reproduções de imagens que se obtêm quando se colocam dois espelhos de frente.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O leve fardo


''Algum tempo atrás, talvez uns dias, eu era uma moça caminhando por um mundo de cores, com formas claras e tangíveis. Tudo era misterioso e havia algo oculto; adivinhar-lhe a natureza era um jogo para mim. Se você soubesse como é terrível obter o conhecimento de repente - como um relâmpago iluminando a Terra! Agora, vivo num planeta dolorido, transparente como gelo. É como se houvesse aprendido tudo de uma vez, numa questão de segundos. Minhas amigas e colegas tornaram-se mulheres lentamente. Eu envelheci em instantes e agora tudo está embotado e plano. Sei que não há nada escondido; se houvesse, eu veria.''

Assim a pintora mexicana Frida Kahlo descreve um estado alcançado por ela em decorrência de uma vida de sofrimentos, angústias e decepção amorosa. Mas também de elaboração disso tudo através da arte. Para conhecer a história dessa mulher fantástica vá AQUI.

Processos vários podem levar um ser humano a iluminação ou ao relâmpago que ilumina a noite escura da alma. Descreve-se como que uma fração de instante em que tudo se esclarece e a visão torna-se plena. Todo o conhecimento é dado "de uma só vez" e o sujeito a partir dali nunca mais será o mesmo. E tudo pode ser visto e compreendido e tudo é ao mesmo tempo, em unidade. A experiência, claro, transcende as palavras, mas Frida chegou perto da descrição, artista que foi, da aura numinosa do fenômeno. 

Talvez se assemelhe à compreensão de que ao sair da roda viva, ou melhor ao mater-se em seu núcleo de forma plácida e serena, se possa ver tudo com clareza e nitidez. Gosto da metáfora que fala que passamos a vida girando enlouquecidamente no vórtice do furacão, a iluminação seria a chegada a centro, ao olho do furacão, o lugar mais calmo, seguro e, onde toda a força se concentra e de onde se pode contemplar a roda da vida.

Mas o centro da mandala alucinada é justamente o local onde se acredita estar a destruição maior, e muitos passam a vida girando, perdidos na ilusão da passagem ininterrupta de coisas, fatos, pessoas. As vezes, como Frida, a eminencia constante de colapso, de morte e de aniquilação de si mesma pode transformar a morte na vida. Para ela a dor trouxe a iluminação.
Mas esse não é o único caminho.
Não temer o olho do furacão e ter coragem de correr exatamente para debaixo dele é a coragem exigida àqueles que desejam trilhar o caminho da sabedoria. E daí em diante ter força para carregar esse leve fardo pelas áridas terras desse "planeta dolorido".