terça-feira, 15 de setembro de 2009

Deixe o silêncio falar


Vocês devem ter cuidado com a palavra, sabiam? A palavra é uma coisa bem perigosa. O mito mais popular do mundo diz que o Demiurgo criou o mundo apenas com a palavra! Pois é, a palavra cria, a palavra destrói. Pa - Lavra. Cava sulcos no terreno fértil, a pá cava, a pá lavra a semente do verbo... É também com a pá que se cava o túmulo, que se joga a cal...
Depois que são proferidas ou escritas não são mais nossas. Um palavra dita é uma folha semeada ao vento, nunca se sabe onde vai parar.
Isso nos leva a pensar sobre o ato de falar como expressão do pensamento, pois este vem antes da fala não? Mas o pensamento é do âmbito íntimo do ser humano, nós ainda não podemos ler a mente, ainda bem! Então o que precisamos lembrar é de ouvir nossos pensamentos antes de falar! Já pararam para pensar sobre isso? Parece que precisamos sempre ter algo a dizer. O silêncio, a propósito, é uma coisa meio condenável neste frenesi do mundo da informação. O silêncio incomoda aos que não falam e aos que não ouvem...
Se não me engano é Balandier, um antropólogo francês, que tem um texto fantástico sobre o dever da palavra. Neste texto ele fala da tarefa que o cacique tem de todos os dias subir num tronco, no centro da aldeia, e falar. Não importa o que ele diz, ninguém sequer escuta o teor da fala, o que importa é ele falar. No dia em que ele não estiver lá falando vira um deus-nos-acuda, pois quebrou-se o rito da fala, da palavra. Nunca esqueci esse texto...

Por fim deixo falar um mestre da palavra e do silêncio, a quem fazemos muito bem em ouvir sempre:


Escutatória

Rubem Alves


Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia. Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma". Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos... Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, [...]. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas.). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades. Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado". Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou". Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou". E assim vai a reunião. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia e que de tão linda nos faz chorar. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.

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