segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Poesia à duas e para muitas mãos



Poesia popular
Poesia de paralepipedar
num pedaço de guardanapo
eu guardo-te
no meu coração, folhas da multidão
do resto
que levantou do chão

Beija-me a boca
como quem beija o céu
Deixa na minha pele
teu cheiro e teu rastro
que arde demais
e faz-me astro que traço
de todo o beijo que atirei

Teu aroma sei de cor 
e canto vermelho
É sempre tu e nunca eu 
em cada espelho
Amor de nós 
como se fosse uma nação
Dois e o gozo do mundo 
na multidão


Poesia à duas e para muitas mãos.
Em homenagem aos tunisianos e egípcios nas ruas, e ao nosso amor.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Um delírio, um sonho, uma visão... diga-me você.


Ela sempre quis tocar o intangível. Louca, sempre foi considerada louca.
Desde criança, ela lembra, as pessoas tinham medo daqueles olhos grandes e penetrantes, porque as pessoas quase sempre são fracas. Sucumbem à arma mais letal como ao olhar mais fixo. Fogem, se escondem, viram o rosto para não verem, não serem vistas.
Ela não.
Onde havia o estranho, o contra-fluxo, a desobediência, a transgressão, o mundo desconhecido, a loucura da morte e do caos, era para lá sua atenção.  O que a fascinava.
Ela sempre seguiu confiante para onde as rédeas são soltas, onde o vento toca a face do amor, onde o amor mergulha no rio da insanidade.
Por isso, agora estendia a mão delicada e branca para a maçaneta de metal escuro e abria a velha porta. Descendo a escadaria de pedra, vasculhando o porão abandonado.
Havia num canto, esquecido, um velho espelho emoldurado por um entalhe no carvalho. Um rosto ali... seria o dela mesma? Tão serena... que estranho... Os mesmos olhos marcantes... fixos na beira do precipício, fascinante e terrível!
Um medo mudo, sem descrição possível.
Ela acendeu um cigarro, deu um trago profundo, essa dor no peito! Seria já a morte?
Uma mulher, ela viu que havia uma mulher no velho porão sombrio. E cartas de tarô sobre um fundo negro de cetim. Que doce e forte música no ar!
“Destino tem um recado para você”, dizia o lamento das guitarras. Uma voz masculina repetia “não vá, não vá, não vá”. E a dor no peito aumentava. Vinha da alma, do amor ou da morte?
São esses malditos cigarros! E a voz não parava de gritar “stay beside me!” Tentou dizer "estou aqui!" E só ouvia o lamento estridente e urgente das guitarras...

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Luz fala....


Tem havido alguma vantagem em ser bruxa. Embora seja preciso lidar com essa linguagem estranha que falam as pessoas, que move o mundo.

A verdade é que não me acostumei.

Pessoas são mercadorias, sentimentos são descartáveis, os olhos são falsos e a desconfiança é sempre a primeira impressão.
Mundo difícil esse.
Em que amar é uma fragilidade, um alvo fácil, um renda-se.

Eu tenho procurado me equilibrar nessa corda fina e elástica que me mantém viva. Passando ou tentando passar ao largo de algumas atitudes humanas, como quem passa por um pântano, cuidando em não afundar ou ser atacada pelas feras que habitam nas sombras.

Eu sei, é preciso seguir mesmo assim.

Porque não me contamino, pessoas dizem que sou estranha, etérea.
Como é difícil ser-se simplesmente!
Já ouvi adjetivos complexos como inatingível, mercurial, sub-reptícia, selvagem.
Gosto sobretudo do "emocionalmente instável". Que graça tem em ser-se monótonamente estável? Viva as emoções!

Faz parte do meu ser, como diria o poeta.

É que venho procurando aqui e em toda parte o que não se pode definir em palavras claras. Esse não-ser, esse não-lugar, esse estado instável constante, esse maravilhamento e assombro.
Eu busco nas pessoas, nas coisas, na natureza, até no que chamam amor. Será que eu o reconheceria aqui? O quanto será que já fui contaminada e não sei?

Dizem que não se é bruxo se não for poeta. A poesia é estado, a linguagem quase perdida, que se fala com o universo e ele responde... o sliêncio.

Clarice Lispector conseguiu se aproximar com as palavras do que seria esse estado:


"Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.


De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio."

Clarice Lispector

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Meu bem



Você sabia?
Meu bem, quando eu escrevo
Poesia eu choro

Nada de novo,
Você já viu isso, meu bem?

Choro e faço blues
Mas, não é tristeza
É estado poético

As lágrimas que choro
são cristais demais
que tenho na alma

Assim,

guarda esses que te dou
Porque quando eu choro
oferto-te essas pequenas luzes

Cristais demais na minha velha alma

domingo, 9 de janeiro de 2011

Aaah a Verdade...


Allah Hu Akbar! Allah Hu Akbar!
Deus criou a mulher e com ela criou a fantasia. Foi assim que um dia a Verdade, coberta apenas com um véu transparente, chegou às portas de um lindo palácio, desejosa de conhecê-lo por dentro. Quando soube que essa mulher nua, coberta apenas por um véu, chamava-se Verdade o sultão Haroun Al-Raschid não permitiu que ela entrasse em seu palácio. “Imagine o que ia ser de mim e de todos aqui se a Verdade aparecesse diante de nós? Estaríamos todos perdidos, sem exceção”, disse ele, alarmado. A Verdade então partiu triste. Mas...

Deus criou a mulher e junto com ela criou a teimosia. E a Verdade, não se dando por vencida, cobriu-se dos pés a cabeça com peles grosseiras, deixando apenas o rosto de fora e foi tentar entrar no palácio. Quando o guarda viu aquela mulher horrivelmente vestida quis saber seu nome o que ela queria. Ao que ela respondeu: “sou a Acusação e exijo uma audiência com o grande senhor do palácio”. O sultão tremeu de medo ao saber que a mulher mal vestida que queria entrar em seu palácio se chamava Acusação. “Nem pensar. Já imaginou o que seria de mim e de todos aqui se a Acusação entrasse nesse palácio? Estaríamos todos perdidos, sem exceção”. E mais uma vez mandou a Verdade embora. Mas, a Verdade não se deu por vencida, pois...

Deus criou a mulher e junto com ela criou o capricho. A Verdade então buscou pelo mundo as vestes mais lindas, feitas de veludo, brocados e bordados de fios multicolores. Enfeitou-se com magníficos colares de pedras preciosas, brincos e pulseiras do mais fino ouro e perfumou-se com essência de rosas. Cobriu o rosto com um véu bordado de fios de seda dourados e prateados e lá foi tentar entrar no palácio do sultão Haroun Al-Raschid. Quando o guarda do portão viu aquela mulher deslumbrante como a Lua, perguntou quem ela era. E a Verdade respondeu com voz melodiosa: “eu sou a Fábula e gostaria de encontrar-me com o sultão deste palácio”.

Os olhos do sultão brilharam quando ele soube que uma mulher tão linda quanto uma rainha se chamava Fábula e deseja entrar em seu palácio. “Mas que grande notícia! Para que ela seja recebida como merece, ordeno que cem escravas a esperem com presentes magníficos, flores perfumadas, danças e músicas festivas”.

Então as portas do grande palácio de Bagdá se abriram graciosamente e por elas finalmente a bela andarilha foi convidada a passar. E foi desse modo que a Verdade, vestida de Fábula, conseguiu conhecer um grande palácio e encontrar-se com Haroun Al-Raschid, o mais fabuloso sultão de todos os tempos.

Conto: Uma Fábula sobre a Fábula
Minha vida querida - Malba Tahan

domingo, 2 de janeiro de 2011

Num sonho



Num sonho com você
Éramos crianças
Eternos

Mas fomos perseguidos pelos brinquedos
E fugimos
Pelo atalho

Tomando as mãos corremos
E todos sorriam
E nos escondemos
Num rabisco
Na parede

A descoberta do amor


“[...] Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.
Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. [...] Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo como uma mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez.
       Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amor. [...] Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continuou intacto. Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é por pudor apenas feminino.
Pois juro que a vida é bonita.”

Clarice Lispector

Texto extraído do livro Aprendendo a viver, Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004