sábado, 24 de dezembro de 2011

A verdadeira história do Natal


A humanidade comemora essa data desde bem antes do nascimento de Jesus. Conheça o bolo de tradições que deram origem à Noite Feliz

por Texto Thiago Minami e Alexandre Versignassi


Roma, século 2, dia 25 de dezembro. A população está em festa, em homenagem ao nascimento daquele que veio para trazer benevolência, sabedoria e solidariedade aos homens. Cultos religiosos celebram o ícone, nessa que é a data mais sagrada do ano. Enquanto isso, as famílias apreciam os presentes trocados dias antes e se recuperam de uma longa comilança.

Mas não. Essa comemoração não é o Natal. Trata-se de uma homenagem à data de “nascimento” do deus persa Mitra, que representa a luz e, ao longo do século 2, tornou-se uma das divindades mais respeitadas entre os romanos. Qualquer semelhança com o feriado cristão, no entanto, não é mera coincidência.

A história do Natal começa, na verdade, pelo menos 7 mil anos antes do nascimento de Jesus. É tão antiga quanto a civilização e tem um motivo bem prático: celebrar o solstício de inverno, a noite mais longa do ano no hemisfério norte, que acontece no final de dezembro. Dessa madrugada em diante, o sol fica cada vez mais tempo no céu, até o auge do verão. É o ponto de virada das trevas para luz: o “renascimento” do Sol. Num tempo em que o homem deixava de ser um caçador errante e começava a dominar a agricultura, a volta dos dias mais longos significava a certeza de colheitas no ano seguinte. E então era só festa. Na Mesopotâmia, a celebração durava 12 dias. Já os gregos aproveitavam o solstício para cultuar Dionísio, o deus do vinho e da vida mansa, enquanto os egípcios relembravam a passagem do deus Osíris para o mundo dos mortos. Na China, as homenagens eram (e ainda são) para o símbolo do yin-yang, que representa a harmonia da natureza. Até povos antigos da Grã-Bretanha, mais primitivos que seus contemporâneos do Oriente, comemoravam: o forrobodó era em volta de Stonehenge, monumento que começou a ser erguido em 3100 a.C. para marcar a trajetória do Sol ao longo do ano.



A comemoração em Roma, então, era só mais um reflexo de tudo isso. Cultuar Mitra, o deus da luz, no 25 de dezembro era nada mais do que festejar o velho solstício de inverno – pelo calendário atual, diferente daquele dos romanos, o fenômeno na verdade acontece no dia 20 ou 21, dependendo do ano. Seja como for, esse culto é o que daria origem ao nosso Natal. Ele chegou à Europa lá pelo século 4 a.C., quando Alexandre, o Grande, conquistou o Oriente Médio. Centenas de anos depois, soldados romanos viraram devotos da divindade. E ela foi parar no centro do Império.

Mitra, então, ganhou uma celebração exclusiva: o Festival do Sol Invicto. Esse evento passou a fechar outra farra dedicada ao solstício. Era a Saturnália, que durava uma semana e servia para homenagear Saturno, senhor da agricultura. “O ponto inicial dessa comemoração eram os sacrifícios ao deus. Enquanto isso, dentro das casas, todos se felicitavam, comiam e trocavam presentes”, dizem os historiadores Mary Beard e John North no livro Religions of Rome (“Religiões de Roma”, sem tradução para o português). Os mais animados se entregavam a orgias – mas isso os romanos faziam o tempo todo. Bom, enquanto isso, uma religião nanica que não dava bola para essas coisas crescia em Roma: o cristianismo.

Solstício cristão


As datas religiosas mais importantes para os primeiros seguidores de Jesus só tinham a ver com o martírio dele: a Sexta-Feira Santa (crucificação) e a Páscoa (ressurreição). O costume, afinal, era lembrar apenas a morte de personagens importantes. Líderes da Igreja achavam que não fazia sentido comemorar o nascimento de um santo ou de um mártir – já que ele só se torna uma coisa ou outra depois de morrer. Sem falar que ninguém fazia idéia da data em que Cristo veio ao mundo – o Novo Testamento não diz nada a respeito. Só que tinha uma coisa: os fiéis de Roma queriam arranjar algo para fazer frente às comemorações pelo solstício. E colocar uma celebração cristã bem nessa época viria a calhar – principalmente para os chefes da Igreja, que teriam mais facilidade em amealhar novos fiéis. Aí, em 221 d.C., o historiador cristão Sextus Julius Africanus teve a sacada: cravou o aniversário de Jesus no dia 25 de dezembro, nascimento de Mitra. 
A Igreja aceitou a proposta e, a partir do século 4, quando o cristianismo virou a religião oficial do Império, o Festival do Sol Invicto começou a mudar de homenageado. “Associado ao deus-sol, Jesus assumiu a forma da luz que traria a salvação para a humanidade”, diz o historiador Pedro Paulo Funari, da Unicamp. Assim, a invenção católica herdava tradições anteriores. “Ao contrário do que se pensa, os cristãos nem sempre destruíam as outras percepções de mundo como rolos compressores. Nesse caso, o que ocorreu foi uma troca cultural”, afirma outro historiador especialista em Antiguidade, André Chevitarese, da UFRJ.

Não dá para dizer ao certo como eram os primeiros Natais cristãos, mas é fato que hábitos como a troca de presentes e as refeições suntuosas permaneceram. E a coisa não parou por aí. Ao longo da Idade Média, enquanto missionários espalhavam o cristianismo pela Europa, costumes de outros povos foram entrando para a tradição natalina. A que deixou um legado mais forte foi o Yule, a festa que os nórdicos faziam em homenagem ao solstício. O presunto da ceia, a decoração toda colorida das casas e a árvore de Natal vêm de lá. Só isso.

Outra contribuição do norte foi a idéia de um ser sobrenatural que dá presentes para as criancinhas durante o Yule. Em algumas tradições escandinavas, era (e ainda é) um gnomo quem cumpre esse papel. Mas essa figura logo ganharia traços mais humanos.

Nasce o Papai Noel


Ásia Menor, século 4. Três moças da cidade de Myra (onde hoje fica a Turquia) estavam na pior. O pai delas não tinha um gato para puxar pelo rabo, e as garotas só viam um jeito de sair da miséria: entrar para o ramo da prostituição. Foi então que, numa noite de inverno, um homem misterioso jogou um saquinho cheio de ouro pela janela (alguns dizem que foi pela chaminé) e sumiu. Na noite seguinte, atirou outro; depois, mais outro. Um para cada moça. Aí as meninas usaram o ouro como dotes de casamento – não dava para arranjar um bom marido na época sem pagar por isso. E viveram felizes para sempre, sem o fantasma de entrar para a vida, digamos, “profissional”. Tudo graças ao sujeito dos saquinhos. O nome dele? Papai Noel.

Bom, mais ou menos. O tal benfeitor era um homem de carne e osso conhecido como Nicolau de Myra, o bispo da cidade. Não existem registros históricos sobre a vida dele, mas lenda é o que não falta. Nicolau seria um ricaço que passou a vida dando presentes para os pobres. Histórias sobre a generosidade do bispo, como essa das moças que escaparam do bordel, ganharam status de mito. Logo atribuíram toda sorte de milagres a ele. E um século após sua morte, o bispo foi canonizado pela Igreja Católica. Virou são Nicolau.

Um santo multiuso: padroeiro das crianças, dos mercadores e dos marinheiros, que levaram sua fama de bonzinho para todos os cantos do Velho Continente. Na Rússia e na Grécia Nicolau virou o santo nº1, a Nossa Senhora Aparecida deles. No resto da Europa, a imagem benevolente do bispo de Myra se fundiu com as tradições do Natal. E ele virou o presenteador oficial da data. Na Grã-Bretanha, passaram a chamá-lo de Father Christmas (Papai Natal). Os franceses cunharam Pére Nöel, que quer dizer a mesma coisa e deu origem ao nome que usamos aqui. Na Holanda, o santo Nicolau teve o nome encurtado para Sinterklaas. E o povo dos Países Baixos levou essa versão para a colônia holandesa de Nova Amsterdã (atual Nova York) no século 17 – daí o Santa Claus que os ianques adotariam depois. Assim o Natal que a gente conhece ia ganhando o mundo, mas nem todos gostaram da idéia.

Natal fora-da-lei


Inglaterra, década de 1640. Em meio a uma sangrenta guerra civil, o rei Charles 1º digladiava com os cristãos puritanos – os filhotes mais radicais da Reforma Protestante, que dividiu o cristianismo em várias facções no século 16.

Os puritanos queriam quebrar todos os laços que outras igrejas protestantes, como a anglicana, dos nobres ingleses, ainda mantinham com o catolicismo. A idéia de comemorar o Natal, veja só, era um desses laços. Então precisava ser extirpada.

Primeiro, eles tentaram mudar o nome da data de “Christmas” (Christ’s mass, ou Missa de Cristo) para Christide (Tempo de Cristo) – já que “missa” é um termo católico. Não satisfeitos, decidiram extinguir o Natal numa canetada: em 1645, o Parlamento, de maioria puritana, proibiu as comemorações pelo nascimento de Cristo. As justificativas eram que, além de não estar mencionada na Bíblia, a festa ainda dava início a 12 dias de gula, preguiça e mais um punhado de outros pecados.

A população não quis nem saber e continuou a cair na gandaia às escondidas. Em 1649, Charles 1º foi executado e o líder do exército puritano Oliver Cromwell assumiu o poder. As intrigas sobre a comemoração se acirraram, e chegaram a pancadaria e repressões violentas. A situação, no entanto, durou pouco. Em 1658 Cromwell morreu e a restauração da monarquia trouxe a festa de volta. Mas o Natal não estava completamente a salvo. Alguns puritanos do outro lado do oceano logo proibiriam a comemoração em suas bandas. Foi na então colônia inglesa de Boston, onde festejar o 25 de dezembro virou uma prática ilegal entre 1659 e 1681. O lugar que se tornaria os EUA, afinal, tinha sido colonizado por puritanos ainda mais linha-dura que os seguidores de Cromwell. Tanto que o Natal só virou feriado nacional por lá em 1870, quando uma nova realidade já falava mais alto que cismas religiosas.

Tio Patinhas

Londres, 1846, auge da Revolução Industrial. O rico Ebenezer Scrooge passa seus Natais sozinho e quer que os pobres se explodam “para acabar com o crescimento da população”, dizia. Mas aí ele recebe a visita de 3 espíritos que representam o Natal. Eles lhe ensinam que essa é a data para esquecer diferenças sociais, abrir o coração, compartilhar riquezas. E o pão-duro se transforma num homem generoso.

Eis o enredo de Um Conto de Natal, do britânico Charles Dickens. O escritor vivia em uma Londres caótica, suja e superpopulada – o número de habitantes tinha saltado de 1 milhão para 2,3 milhões na 1a metade do século 19. Dickens, então, carregou nas tintas para evocar o Natal como um momento de redenção contra esse estresse todo, um intervalo de fraternidade em meio à competição do capitalismo industrial. Depois, inúmeros escritores seguiram a mesma linha – o nome original do Tio Patinhas, por exemplo, é Uncle Scrooge, e a primeira história do pato avarento, feita em 1947, faz paródia a Um Conto de Natal. Tudo isso, no fim das contas, consolidou a imagem do “espírito natalino” que hoje retumba na mídia. Quer dizer: quando começar o próximo especial de Natal da Xuxa, pode ter certeza de que o fantasma de Dickens vai estar ali.

Outra contribuição da Revolução Industrial, bem mais óbvia, foi a produção em massa. Ela turbinou a indústria dos presentes, fez nascer a publicidade natalina e acabou transformando o bispo Nicolau no garoto-propaganda mais requisitado do planeta. Até meados do século 19, a imagem mais comum dele era a de um bispo mesmo, com manto vermelho e mitra – aquele chapéu comprido que as autoridades católicas usam. Para se enquadrar nos novos tempos, então, o homem passou por uma plástica. O cirurgião foi o desenhista americano Thomas Nast, que em 1862, tirou as referências religiosas, adicionou uns quilinhos a mais, remodelou o figurino vermelho e estabeleceu a residência dele no Pólo Norte – para que o velhinho não pertencesse a país nenhum. Nascia o Papai Noel de hoje. Mas a figura do bom velhinho só bombaria mesmo no mundo todo depois de 1931, quando ele virou estrela de uma série de anúncios da Coca-Cola. A campanha foi sucesso imediato. Tão grande que, nas décadas seguintes, o gorducho se tornou a coisa mais associada ao Natal. Mais até que o verdadeiro homenageado da comemoração. Ele mesmo: o Sol.

Para saber mais
Religions of Rome - Mary Beard, John North; Cambridge, EUA, 1998
Santa Claus: A Biography - Gerry Bowler, McClelland & Stewart, EUA, 2005
www.candlegrove.com/solstice.html - Como várias culturas comemoram o solstício de inverno. 

Fonte:

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Cama na floresta



Há um mar de profundidade abismal no silêncio que me toma. Mergulhando-me em você. Pulsando com todo meu ser como uma nota musical. E tudo por segundos eternos.
Só aos poucos volto a ouvir um som indistinto, depois da tempestade elétrica que se abateu. E clareou a floresta.
Devagar abro os olhos, na meia luz.
O zumbido se transforma em música, um blues baixinho que demoro a identificar a origem. Suspiro e ainda sinto os últimos raios a percorrerem meu corpo. A música vem lá de fora. Vem do teu sorriso largo. Vem dos teus olhos. Vem do vento nas árvores e dos seres da noite.
Caio em teus braços. Amor quente e convidativo. Calmo e doce.
Outra onda de energia pulsante.
E suspiro, deixando meu corpo mergulhar na preguiça macia da nossa cama. E há teus braços ao meu redor e tua voz dizendo amor.
E há sempre o som da floresta lá fora.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Por que ela já disse, só posso repetir.




Se eu fosse eu

Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar, diria melhor SENTIR. 
E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser LOCOMOVIDA do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida. 
Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei. 
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo que é meu e confiaria o futuro ao futuro. 
"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. 
No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teriamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.
Clarice Lispector



quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O que diria meu Mestre Pessoa sobre a vida

Diz meu Mestre para nunca "ficarmos à sombra de nós mesmos".
E eu digo:

Esse cenário vivo a modificar-se
O que é
A vida.
Vamos erguendo essas torres, muros, escadarias
E um velho fosso.
No cenário a angústia, a intensidade, a agonia
Todo dia.
E essa força que nos invade e impurra
E diz que siga.
Vamos correndo na estrada, as vezes vazia
Da Vida.
E é isso, correr sem medida, sem prumo, sem guia.
Que doce não saber o vem ao virar
A esquina.
E uma vez ultrapassado o fosso, descida a escadaria,
Uma vez pulado o muro e deixado
Para trás
A Torre.
Oh! Que incrível é a paisagem dessa nova mirada.
Vem de repente outra nova estrada
E correndo ou lentamente
Seguimos.


domingo, 27 de novembro de 2011

Meu eu profundo e meu outro eu



Um lado meu está ficando grisalho. Aproxima-se a meia idade, quando a Deusa em mim encontra os dois lados de seu poder com mais propriedade.
Cedo chegará a hora de encarar a prata de muitas luas nos meus cabelos, os sulcos da terra lavrada na minha pele. Aquela mudança no olhar, aprofundamento, de olhar para ver. Aquela nova relação com o tempo.
Caminho mais lento aqui dentro.
Mas com-centração constante, inabalável mesmo quando o corpo se agita. Como as ondas mais frenéticas quebram na margem, enquanto o oceano é plácido, denso, profundo, antigo e sábio em seu íntimo.
E... Desconhecido.
Tempestades ainda assolam, raios e furacões, terremotos e vulcões...
Ainda convulsões.

Mas caminho certo para a serenidade ativa.
Antes, porém a grande decida ainda não terminou.
Caio vertiginosamente.
É preciso tomar decisões definitivas. Mudanças drásticas.
Enfrentar um mal antigo, habitante das mais profundas cavernas do meu ser.
Só eu, sozinha, posso fazer isso.
Estou só, mesmo em meio a tantos amigos e amor.
Estou só e sigo na escuridão e há uma única luz, aquela que cintila placidamente no meio de mim.
Estou indo...
Devo nascer outra vez.
E como isso dói.


ALMA-IRMÃ
(…)

"Um longo, longo silêncio e, então, como se o sonho ainda continuasse, aparece diante dela a imagem radiosa de uma elegante e sublime mulher, de vestes diáfanas em toda a sua glória, e o esplendor da sua alma brilha através de um corpo fulgurante de luz como que iluminando as suas vestes de sedas fulgentes, transparentes e maravilhosas.

-“Quem és tu que vens a mim neste momento de desolação?”

- “Oh, Filha da Luz, eu sou a tua irmã-espírito…
Porque tiveste coragem no momento em que o cordão foi seccionado, e porque te mantiveste fiel à verdade no instante da morte, tenho permissão para estar contigo e entregar-te este botão de flor.

Quando este botão florir, virão libertar-te.”

Ela coloca a mão sobre o ombro da discípula; a força e a glória da Luz que está nela fluem para o seu corpo. E ela conhece então o êxtase e a pureza da verdadeira Visão Espiritual, aquela que, para a poder alcançar a fez permanecer naquela solidão tanto tempo. Jamais ela sentira aquele êxtase na pulsação das suas veias, enchendo assim o seu coração…

- “Não me abandones, fica comigo!”

-“Não poderei ficar, mas dei-te o botão em flor e quando ele florir elas virão”.

E a discípula vê-se só de novo.
(…)
Um prolongado silêncio e, a porta do sarcófago é aberta…
(…)
Ela vê então em sua mão direita o botão a abrir-se e sente o perfume de uma rosa branca e perfeita, a única recompensa que teve, além da lembrança da gloriosa beleza do sonho que sonhou."

In INICIAÇÃO JUNTO AO NILO


Mona Rulfe

sábado, 26 de novembro de 2011

Pro meu anjo



O que eu procurava era assim
Que você gostasse de mim
Como sou.
Com esse meu jeitin
Que é preciso ser atento pra ver
Ser você.
Pra ver meu pezinho de lado quando estou distraída
Pra achar bonito quando bocejo e digo
Com voz de menina “tô com sono”.
Pra me juntar no teu peito e dizer do teu jeito
Que eu sou seu coração.

O que eu procurava era assim
Um amor tamborim como você
Um anjo feliz, com asas macias e grandes
Pra envolver minha alma e corpo todin.
Com voz de conforto e amor sincero
Com olhos de cristal e ferro
Com sorriso de menino.

Eu achei você quando olhei no último segundo
Balançando na beira do abismo
E o que eu achei que era
Era  o que eu queria
E você me puxou pra você
Me puxando pra mim.

domingo, 20 de novembro de 2011

Do Wanenstaimm

Foto by Verena Viana

Deliciosamente estranho, profundo, bruxal.
Um toque do Destino!
Um vendaval.

Estranhamente pessoal,
na minha pele o doce
Teu toque visual.

Profundamente bruxo, antigo
de tantos 
Um encontro, um ombro, um amigo
e num toque do Destino
Um amor
Mais velho que o mar.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Quem sou


Quem sou eu
Agora que te conheci?
Agora que desenterras esse livro
Meio velho, queimado, rasgado.
Que sou eu...
Soterrada nas areias de um tempo.
Quem sou,
Quando o que me definia
Não é mais feito dessas páginas.
Porque você me leu.
Então me diz:
Quem sou eu?

Quem sou, quando te conhecendo,
Reconheci-me tão diferente
Nesse espelho?
Diz o que lá está escrito
E não posso ler
Ao contrário do brilho,
Ao contrário do que aparento não ser.
Diz-me onde está a rosa
Em meio aos espinhos.
Já que me conheces tão bem.
Espero saber
 Quem sou eu agora que te conheci.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Poeminha besta sobre uma carta que não existe



Fui escrever.
Excondida do mundo. Excondida de tudo.
Uma carta para você.
Para que esta carta?
Não vou mandá-la, não tenho seu endereço.
Não sei seu nome, ou se existe.

Fui escrever, lá num recanto sombrio.
Furtivo e frio do meu ser.
Uma carta, muito linda, borrada de lágrimas.
Para que escrever?
Não vou mandá-la nunca!
O carteiro vai rir: só tem remetente.
Mando para o céu, mando para Deus?
Mande para mim! – diz  o carteiro, que me sorri.
Tocou meu ombro e deixou uma marca.
E foi embora, levando a carta.
E quando você receber, perfumada de mim,
Vai saber.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Chuva que cai



Que chuva é essa que cai aqui
Que cai em mim, sem me avisar?
Que chuva fria molhando o sol,
Evaporando a vida,
Dos telhados quentes.

Que chuva é essa?
Que trás um frio úmido e passado,
Que traz de volta julho?
Chuva chata, sem graça, sem sentido!

Que chuva é essa que cai aqui
Que cai em mim sem me molhar?
Cai fininha e cheia de luz,
Misturada ao sol.

E lá na rua, o vento trás as vozes
das crianças que cantam:
“chuva com sol, casamento de espanhol”...

Paro e penso:
No dia do me casamento 
vai chover.
E molhar meu vestido rosa-chá

Vai chover e deixar
um perfume dos jasmins no ar.

No dia do meu casamento vai ter sol
e iluminar a flor da sua lapela
e banhar de luz aquela passagem
uma nova estrada bela.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Ainda bem


Ainda bem
Que agora encontrei você
Eu realmente não sei
O que fiz pra merecer
Você
Porque ninguém
Dava nada por mim
Quem dava, eu não tava a fim
Até desacreditei
De mim

O meu coração
Já estava acostumado
Com a solidão

Quem diria que a meu lado
Você iria ficar
Você veio pra ficar
Você que me faz feliz
Você que me faz cantar
Assim

O meu coração
Já estava aposentado
Sem nenhuma ilusão

Tinha sido maltratado
Tudo se transformou
Agora você chegou

Você que me faz feliz
Você que me faz cantar
Assim

terça-feira, 8 de novembro de 2011

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Se pronto...



Se pronto chegar la luna llena,
Logo cairão em pétalas frias
Os beijos da noite que brilha.

Se pronto soprarem los vientos de verano,
Logo os sorrisos claros
Abrirão nas manhãs.
Nos lagos, em gotas caindo
as nuvens sobre as lajes quentes da cidade.
Ofuscando as vistas em raios solares.

Se pronto son los hermanos,
Eternamente separados e amantes,
Luna e Sol
logo sentiremos força tão cambiante
Do amor sobre tudo
se quedar.
Nem a mais alquebrada alma  indiferente à luz será
nesses dias.
Nenhuma única pá do moinho de se mover deixará.

E se ouvirá na voz dos pássaros,
Em melodiosos presságios de melhoras,
Ecos sorrisos, todos os lábios,
Até os mais tristes,
Pela força dessa hora.
E tomada tua mão tão distante
na minha,
farei correr teus pés pela trilha
Como se fosse sempre,
Como se fosse dantes.

Se pronto chegar la luna llena,
Logo cairão em pétalas frias
Os beijos da noite que brilha.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Sim


Quando deu por si tinha dito sim. SIM.
Apercebeu-se com um susto que a resposta era afirmativa. Tinha dito sim a vida.
E doravante tomaria as rédeas do tempo e dos fatos.
O sim tão poderoso chegara!
Raro e por isso mesmo cheio de poder.

Sim eu quero.
Sim eu posso.
Sim eu mereço.
Sim eu consigo.
Sim eu aceito.

Deu por si carregada de poder, pois o poder vinha da auto-afirmação pela vida.
SIM.
Não dói, não custa nada. E se estiver com medo feche os olhos e sibile como as serpentes.
Siiiiiiiiiiiiiiiiiiimmmmmmmmm.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Carta do Cacique Mutua a todos os povos da Terra



O Sol me acordou dançando no meu rosto. Pela manhã, atravessou a palha da oca e brincou com meus olhos sonolentos.
O irmão Vento, mensageiro do Grande Espírito, soprou meu nome, fazendo tremer as folhas das plantas lá fora.
Eu sou Mutua, cacique da aldeia dos Xavantes. Na nossa língua, Xingu quer dizer água boa, água limpa. É o nome do nosso rio sagrado.
Como guiso da serpente, o Vento anunciou perigo. Meu coração pesou como jaca madura, a garganta pediu saliva. Eu ouvi. O Grande Espírito da floresta estava bravo.
Xingu banha toda a floresta com a água da vida. Ele traz alegria e sorriso no rosto dos curumins da aldeia. Xingu traz alimento para nossa tribo.
Mas hoje nosso povo está triste. Xingu recebeu sentença de morte. Os caciques dos homens brancos vão matar nosso rio.
O lamento do Vento diz que logo vem uma tal de usina para nossa terra. O nome dela é Belo Monte. No vilarejo de Altamira, vão construir a barragem. Vão tirar um monte de terra, mais do que fizeram lá longe, no canal do Panamá.
Enquanto inundam a floresta de um lado, prendem a água de outro. Xingu vai correr mais devagar. A floresta vai secar em volta. Os animais vão morrer. Vai diminuir a desova dos peixes. E se sobrar vida, ficará triste como o índio.
Como uma grande serpente prateada, Xingu desliza pelo Pará e Mato Grosso, refrescando toda a floresta. Xingu vai longe desembocar no Rio Amazonas e alimentar outros povos distantes.
Se o rio morre, a gente também morre, os animais, a floresta, a roça, o peixe tudo morre. Aprendi isso com meu pai, o grande cacique Aritana, que me ensinou como fincar o peixe na água, usando a flecha, para servir nosso alimento.
Se Xingu morre, o curumim do futuro dormirá para sempre no passado, levando o canto da sabedoria do nosso povo para o fundo das águas de sangue.
Hoje pela manhã, o Vento me levou para a floresta. O Espírito do Vento é apressado, tem de correr mundo, soprar o saber da alma da Natureza nos ouvidos dos outros pajés. Mas o homem branco está surdo e há muito tempo não ouve mais o Vento.
Eu falei com a Floresta, com o Vento, com o Céu e com o Xingu. Entendo a língua da arara, da onça, do macaco, do tamanduá, da anta e do tatu. O Sol, a Lua e a Terra são sagrados para nós.
Quando um índio nasce, ele se torna parte da Mãe Natureza. Nossos antepassados, muitos que partiram pela mão do homem branco, são sagrados para o meu povo.
É verdade que, depois que homem branco chegou, o homem vermelho nunca mais foi o mesmo. Ele trouxe o espírito da doença, a gripe que matou nosso povo. E o espírito da ganância que roubou nossas árvores e matou nossos bichos. No passado, já fomos milhões. Hoje, somos somente cinco mil índios à beira do Xingu, não sei por quanto tempo.
Na roça, ainda conseguimos plantar a mandioca, que é nosso principal alimento, junto com o peixe. Com ela, a gente faz o beiju. Conta a história que Mandioca nasceu do corpo branco de uma linda indiazinha, enterrada numa oca, por causa das lágrimas de saudades dos seus pais caídas na terra que a guardava.
O Sol me acordou dançando no meu rosto. E o Vento trouxe o clamor do rio que está bravo. Sou corajoso guerreiro, não temo nada.
Caminharei sobre jacarés, enfrentarei o abraço de morte da jiboia e as garras terríveis da suçuarana. Por cima de todas as coisas pularei, se quiserem me segurar. Os espíritos têm sentimentos e não gostam de muito esperar.
Eu aprendi desde pequeno a falar com o Grande Espírito da floresta. Foi num dia de chuva, quando corria sozinho dentro da mata, e senti cócegas nos pés quando pisei as sementes de castanha do chão. O meu arco e flecha seguiam a caça, enquanto eu mesmo era caçado pelas sombras dos seres mágicos da floresta.
O espírito do Gavião Real agora aparece rodopiando com suas grandes asas no céu.
Com um grito agudo perguntou:
Quem foi o primeiro a ferir o corpo de Xingu?
Meu coração apertado como a polpa do pequi não tem coragem de dizer que foi o representante do reino dos homens.
O espírito do Gavião Real diz que se a artéria do Xingu for rompida por causa da barragem, a ira do rio se espalhará por toda a terra como sangue e seu cheiro será o da morte.
O Sol me acordou brincando no meu rosto. O dia se abriu e me perguntou da vida do rio. Se matarem o Xingu, todos veremos o alimento virar areia.
A ave de cabeça majestosa me atraiu para a reunião dos espíritos sagrados na floresta. Pisando as folhas velhas do chão com cuidado, pois a terra está grávida, segui a trilha do rio Xingu. Lembrei que, antes, a gente ia para a cidade e no caminho eu só via árvores.
Agora, o madeireiro e o fazendeiro espremeram o índio perto do rio com o cultivo de pastos para boi e plantações mergulhadas no veneno. A terra está estragada. Depois de matar a nossa floresta, nossos animais, sujar nossos rios e derrubar nossas árvores, querem matar Xingu.
O Sol me acordou brincando no meu rosto. E no caminho do rio passei pela Grande Árvore e uma seiva vermelha deslizava pelo seu nódulo.
Quem arrancou a pele da nossa mãe? gemeu a velha senhora num sentimento profundo de dor.
As palavras faltaram na minha boca. Não tinha como explicar o mal que trarão à terra.
Leve a nossa voz para os quatro cantos do mundo clamou O Vento ligeiro soprará até as conchas dos ouvidos amigos ventilou por último, usando a língua antiga, enquanto as folhas no alto se debatiam.
Nosso povo tentou gritar contra os negócios dos homens. Levamos nossa gente para falar com cacique dos brancos. Nossos caciques do Xingu viajaram preocupados e revoltados para Brasília. Eu estava lá, e vi tudo acontecer.
Os caciques caraíbas se escondem. Não querem olhar direto nos nossos olhos. Eles dizem que nos consultaram, mas ninguém foi ouvido.
O homem branco devia saber que nada cresce se não prestar reverência à vida e à natureza. Tudo que acontecer aqui vai voar com o Vento que não tem fronteiras. Recairá um dia em calor e sofrimento para outros povos distantes do mundo.
O tempo da verdade chegou e existe missão em cada estrela que brilha nas ondas do Rio Xingu. Pronta para desvendar seus mistérios, tanto no mundo dos homens como na natureza.
Eu sou o cacique Mutua e esta é minha palavra! Esta é minha dança! E este é o meu canto!
Porta-voz da nossa tradição, vamos nos fortalecer. Casa de Rezas, vamos nos fortalecer. Bicho-Espírito, vamos nos fortalecer. Maracá, vamos nos fortalecer. Vento, vamos nos fortalecer. Terra, vamos nos fortalecer.
Rio Xingu! Vamos nos fortalecer!
Leve minha mensagem nas suas ondas para todo o mundo: a terra é fonte de toda vida, mas precisa de todos nós para dar vida e fazer tudo crescer.
Quando você avistar um reflexo mais brilhante nas águas de um rio, lago ou mar, é a mensagem de lamento do Xingu clamando por viver.
Cacique Mutua

A quantas anda esse projeto nefasto, vejam aqui

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Ao encontro da magia Wanen

Olhaê, bruxos de todo o planeta, divulgando e convidando-vos a juntarem-se a nós nesses 3 dias de celebrações! Contatos na página do evento, no Facebook HERE
Para ver melhor, clique na imagem.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Só um sonho


Não houve o encontro em meio ao tempo e espaço, num dos bancos do bosque. Não se viram pelo brilho do olhar de desejo, na noite que se iniciava. Nunca existiu aquela noite cheia de carícias e beijos quentes. Suas mãos nunca exploraram a força do desejo manifestando-se nos corpos. Jamais suas línguas falaram como as ondas mornas quebrando na praia, numa noite quente de verão. Nem o roçar dos lábios e os suspiros profundos, nunca nada disso encheu o ar de eletricidade, naquele lugar inexistente.
- Nós nunca nos encontramos né?
- Nunca. Isso não passa de um sonho.
- Exato. Não sinto seu perfume, nem seu gosto.
- Meu corpo não está colado no seu, nem se arrepia quando sente teu desejo por mim.
- Nem o meu quer entrar no seu.

Como não existiu esse momento, nunca se desejaram, nem marcaram de se ver sorrateiramente, tendo as árvores como únicas testemunhas. Nem saíram de mãos dadas e olhares cúmplices. Tudo devaneio, tudo só um sonho...

E-books Aleister Crowley

Todos os livros do Aleister Crowley para baixar aqui

Essa é para calar e pensar...


terça-feira, 18 de outubro de 2011

Bruxas e mulheres sábias: as de fora.

O texto abaixo foi extraído e adaptado da minha tese de doutorado: Teodora e Porcina: faces simbólicas da natureza em narrativas de mulheres sábias.


A aversão à mulher e ao feminino, com todo o universo estranho que os rodeia, tem sido a fonte dos maiores mal-entendidos no campo da Bruxaria. O temor ao desconhecido foi transferido, em muitos momentos críticos em que a Bruxaria saiu das sombras, para a figura da bruxa ou feiticeira. Em geral a mulher sábia dos povoados, a curandeira ou parteira, aquela que sabia fazer os filtros e as poções, era a ponte entre o mundo da matéria e o mundo feérico, entendida portanto, como fonte de todo o mal que pudesse atingir àquela sociedade, pois era ela personificação do desregramento. A bruxa é entendida, nessa lógica, como parceira do mal maior, do maior dos desordenadores, o próprio Diabo. A demonização das mulheres sábias aparece claramente nas confissões extraídas sob tortura pelos inquisidores, que dirigiam as falas dos inquiridos para um imaginário onde imperavam a prática do sabá e a adoração ao Diabo. Quando, na verdade, o que gerou os primeiros inquéritos foram as práticas e crenças agrárias ou fúnebres de herança pagã que, por ocasião da imposição da Igreja Católica, tornou-se ameaça a ser eliminada.

Guinzburg (1988), entre outros estudiosos da inquisição, constataram surpresos que as práticas dos bruxos (no caso dos Benandanti, bruxos de uma região da Itália), nada tinham a ver com o sabá e o Diabo ou qualquer demônio. “[...] quando nos dedicamos a examinar os ritos que os benandanti afirmavam realizar nos seus encontros noturnos, toda a analogia com o sabá desaparece” (1988, p. 42). Porque, de fato, as práticas dos Benandanti mais se aproximavam das viagens xamânicas. Suas crenças parecem, como mostra Guinzburg, pertencerem quase que absolutamente às camadas populares, diferentemente do que se denominou de magia ou magia natural (tratados de magia natural), as quais acabaram tomando formas mais eruditas.

De modo que, regidos por seus tratados de demonologia, os inquisidores do Santo Ofício, se viam perplexos diante de depoimentos que falavam das batalhas noturnas dos Benandanti com os feiticeiros. Como os inquisidores poderiam condenar uma mulher por lutar com os feiticeiros (seus supostos adversários) em defesa dos campos e da colheita farta? Os interrogatórios, que começavam brandamente, ganhavam contornos maléficos quando os inquisidores faziam questionamentos diretivos sobre a presença do Diabo. Se ele guiava os Benandanti, e se havia locais onde se reuniam para banquetear-se, em sugestão ao Sabá.  Enredados pelo medo, os acusados acabavam por incluir em suas falas esses aspectos, que rendiam aos inquisidores um sentido e um modo de punição lógico e correspondente aos seus tratados. E concluíam os inquéritos com confissões de adoração ao Diabo e orgias noturnas obtidas por meio da tortura.

[...] Há, nas perguntas dos juízes, alusões mais que evidentes ao sabat das bruxas – que era, segundo os demonologistas, o verdadeiro cerne da feitiçaria: quando assim acontecia, os réus repetiam mais ou menos espontaneamente os estereótipos inquisitoriais então divulgados na Europa pela boca de pregadores, teólogos, juristas, etc (GINZBURG, 1991, p. 206).

Muitas dessas bruxas eram, na verdade, mulheres que de um modo ou de outro exerciam práticas fora da norma. Como se acreditava que elas possuíam capacidades estranhas, como curar, prever o futuro, falar com os mortos, voar em espírito pelos campos, conhecer o uso das ervas, as pessoas procuravam-nas, mas também tinham medo delas. Essas mulheres eram operadoras do Saber Mágico, pois pertenciam ao limiar entre o dentro e o fora, o mundo humano e o sobrenatural. Eram as “mulheres de fora”, chamadas na Sisília de donne di fuori, objeto de estudo de Gustav Henningsen (1990), entendidas como situadas entre a fada e a bruxa, que tinham a capacidade de curar os doentes, de identificar os malefícios e os anular.

As donne di fuori eram consideradas pela população figuras mágicas benevolentes, cujos traços se situavam na fronteira entre o universo do sabá, da mitologia clássica e dos contos maravilhosos: elas se organizavam em companhias e se reuniam em assembléias noturnas em que o demônio não estaria presente; eram descritas como belas mulheres vestidas de branco ou de negro, mulheres cuja origem sobrenatural era sublinhada pela cauda ou por patas de animais. A Inquisição da Sicília ocupou-se de dezenas de mulheres assimiladas a essa figura mítica, acusando-as de bruxaria (BETHENCOURT, 2004, p. 22)[1].

Portanto, os relatos de reuniões ou assembleias de bruxas estão, em alguns momentos, relacionadas ao sabá, mas não ao Diabo. Já mais tardiamente, as procissões das bruxas e dos mortos, os voos, as poções e o próprio sabá, com a presença marcante do demônio, consolidaram todo um imaginário da bruxaria demoníaca em grande parte da Europa. Mas, o que estudiosos como Guinzburg, Henningsen e Bethencourt, entre outros, vão demonstrar, ao enfocar determinadas comunidades isoladas ou ainda não afetadas por esse imaginário, é que as práticas e crenças das bruxas se relacionam muito mais ao xamanismo. Ou, em alguns casos, essencialmente às velhas e tradicionais crenças pagãs. Ou seja, mais próximas das histórias orais e das narrativas tradicionais onde há a presença marcante do universo mágico ligado à Mulher Sábia, seja como bruxa, fada ou ser da natureza, cujo principal atributo é transitar entre o mundo de fora e o de dentro. E, por esse acesso, portar a capacidade de curar, falar com os mortos, prever o futuro, ou conhecer as marés astrológicas e uso das pedras e dos elementos.

BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. Trad. Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das letras, 2006.
GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. Trad. Jônas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. Trad. Nilson Moulin Louzada. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.
HENNINGSEN, Gustav. The ladies from Outside: An Archaic pattern of the witche's sabbath. Early modern European witchcraft Oxford, 1990.





[1] Grifo meu.