Um Conto de Natal
Era uma noite chuvosa de Natal, o frio cortante fazia com que ela se encolhesse junto a um poste.
Esperava o ônibus.
Apesar das luzes coloridas e do ar alegre que envolvia a época, e que todos chamavam de “espírito natalino”, Lilian sentia-se sempre muito distante disto tudo. Embaixo do casaco de couro preto seu corpo frágil e cansado não via a hora de envolver-se em quentes lençois numa cama bem aconchegante. O escuro da rua e a chuva muito forte não a impediram de divisar, a alguns metros, a placa iluminada do seu ônibus 124 via Centro.
Saiu da precária proteção do poste e esticou o braço para que ele parasse. Nesse instante uma moto se impôs entre a calçada e o veículo a toda velocidade, fazendo com que o ônibus desviasse para a esquerda, não podendo parar. Como se ainda fosse pouco perder o último ônibus da noite, a motocicleta ainda arremessou uma torrente de água gelada sobre Lilian. Irada e encharcada, ficou ali parada sem saber o que fazer e tremendo ainda mais que antes.
Com dificuldade olhou o relógio, 1:30hs, como ía vou para casa agora? Andando... respondeu a si mesma com tristeza.
Lilian já caminhava há alguns minutos quando um sujeito mal encarado a abordou.
- Não grite, basta me passar o dinheiro e não vou te fazer nenhum mal - disse ele apontando algo que ela julgou ser uma arma. Tremendo começou a lutar contra o zíper da bolsa.
- Anda, tá demorando muito! - O sujeito expôs o revolver e o encostou ao rosto dela, - se demorar mais um minuto vai morrer, gatinha.
- Eu acho que não, alguém falou na escuridão da rua. Um homem se aproximava, andando devagar. Seu sobretudo tremulava, era um vulto completamente negro pois estava contra a luz do poste mais distante.
- Largue a moça! - Ordenou com uma voz de trovão.
- Que é que há meu irmão, fica na tua, ninguém te chamou aqui. Quem é você, o Bátmam? O vulto se aproximou ainda mais e o ladrão avançou para ele, apontando a arma.
Num piscar de olhos ouviu-se um tiro ecoar na noite.
Lilian viu a arma na mão do homem de negro, sentiu suas pernas bambearem como se fossem de borracha e depois o baque no asfalto molhado.
***
Algo se moveu na escuridão, fazendo barulho, e Lilian acordou.
Tentou ver o lugar onde estava, mas os olhos turvos e a mente confusa não ajudavam.
Aos poucos a penumbra...
Viu que o local era estranho, definitivamente não é meu apartamento, pensou e precipitou-se a levantar, quando percebeu que havia mais alguém com ela.
- Olá, disse uma voz forte de homem. Lilian balbuciou alguma coisa e ele se apressou em dizer,
- Não se preocupe você agora está salva.
- Quem é você? - gaguejou ela, por fim.
Ele desencostou da poltrona e surgiu na luz do abajur da sala. Os cabelos longos e levemente grisalhos, refletiam a luz como prata, os olhos de um mel claro, tinha uma luz estranha, não humana. Tinha uma barba igualmente grisalha e lisa, um homem de uns 70 anos, pensou ela.
Seu charme era quase palpável, estava metido em um terno negro, assim como a camisa de dentro, o que realçava muitíssimo um cordão de prata que trazia no pescoço. Ela deixou cair o queixo quando viu o pingente, também de prata, parecia um símbolo antigo, talvéz germânico.
- Meu nome é Nicolai Claus, mas alguns me chamam de Mr. Winter.
Nicolai Claus, ecoou ela, que homem mais... estranho...
- Lilian...- e de repente lembrou-sede tudo, do ônibus, do assalto.
- Oh, meu deus! Muito, muito obrigada por ter me ajudado, me desculpe é que ainda estou atordoada e...
- Não se preocupe- interrompeu ele, sorrindo. Lilian tentava a todo custo arrumar seus pensamentos, mas só conseguia ver o rosto desse homem, sua presença a perturbava demais.
- Bem... Não sei o que dizer - falou, por fim. Mas Nicolai levantou-se e saiu, sem nada responder, o que lhe pareceu bastante excêntrico. Lilian notou, impressionada, como ele era alto. Talvez tivesse um metro e noventa, parecia forte, poderoso, apesar da idade.
A sala ficou em total silêncio.
Lilian perscrutou a escuridão quebrada apenas pelo pequeno abajur ao lado da poltrona onde Nicolai estivera sentado. Levantou-se e andou com cautela, tentando enxergar o local. Era uma biblioteca luxuosa, as estantes de madeira escura iam até o teto, havia uma mesa comprida e pesada a um canto do aposento e, no centro, dois sofás de couro e a poltrona, iluminada pelo abajur de pé. Uma pequena pilha de livros descansava sobre a mesinha redonda de centro. Olhava distraída os vários quadros nas paredes, agora que a vista se acostumara ao escuro. Um jardim muito extenso, um senhor distinto e sério pousando ao lado de uma criança robusta, nenhuma natureza morta, pensou ela aleatoriamente.
Foi quando viu um quadro que a chocou.
Seu rosto estava ali pintado com esmero e perfeição. Não pôde acreditar. Correu à bolsa e trouxe de lá um isqueiro. Era ela de fato, um pouco mais velha, talvez... Mas, o que significa isto? À sua frente abria-se o comprido corredor por onde Nicolai saíra. Sentiu-se confusa, milhões de pensamentos estranhos percorreram sua mente.
Então sentiu uma presença.O ar se modificou.
Ele estava ali, junto a seu corpo.
O isqueiro apagou, ela tentou em vão reacendê-lo. Não funcionou.
E veio sua voz, rompendo o silêncio tenso. Ele falou com uma voz de outro mundo em seu ouvido, roçando o queixo em seu pescoço.
- Nas noites de Natal, no solstício de verão, todos sabem, o Caçador Selvagem, correndo atrás do Sol, carrega consigo a alma daqueles que encontra pelo caminho. Não devia perambular por aí, mas parece que você se esqueceu.
Era mais um sussurro do que uma voz.
E de repente Lilian se viu jogada novamente no asfalto molhado, como se tivesse acabado de desmaiar após o assalto.
Havia sangue.
Sangue escorrendo de sua cabeça por um buraco de bala.
Estava morta?
Não sabia, não conseguia entender porque continuava vendo tudo, vendo o asfalto molhado onde as luzes coloridas se refletiam em fachos quase psicodélicos, ouviundo os sapatos do bandido chocando-se contra o chão e as pedrinhas do asfalto e o chiado das pedrinhas com a água, e a sombra do homem de negro se distanciando... Não compreendia, mas queria fugir dali, o mais rápido possível.
Tentou levantar-se, não conseguiu, mas olhou para o céu escuro, como a procurar ajuda.
As poucas estrelas iam sumindo por trás de uma núvem escura e espessa que começava a se formar. Um vento gélido e furioso começou a soprar e ela ficou petrificada ao distinguir em meio a núvem negra um cavalo branco com cascos de fogo. Montado nele uma figura horripilante, de rosto sinistro.
O que parecia ser um homem de cabelos e barbas cinzentas usava um capuz negro combrindo parcialmente seu rosto fantasmagórico, trazia numa das mãos uma lança pontiaguda e nela corpos de pessoas penduradas. Uma matilha de cães e outros seres demoníacos corriam atrás do homem e seu cavalo sinistro em meio a uma esteira de ossos humanos e animais.
O ser nefasto dirigiu seus olhos fantasmagóricos para Lilian e como um ráio transpassou seu corpo frágiu com a lança de madeira pontuda.
Ela ainda pode enxergar por um instante os primeiros raios do Sol nascente no Leste e reconhecer a face distorcida de Nicolai Claus.
*Baseado no mito de Wotan, ou Odin, o caçador selvagem.