segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Isobel


Isobel é uma louca mulher, desvairada de alegria, afogada pela tristeza. Isobel é viva, embora não exista. Isobel viveu antes da chegada dos padres na ilha. Corria por entre as brumas do campo, como se fosse uma cega, sem jamais cair ou tropeçar. Deitava-se na relva molhada e fria e deixava-se cobrir pelos pirilampos e mariposas, atraídos por sua luz. Isobel tinha mãe. Isobel não sabia quem era seu pai. Isobel sonhava com um guerreiro que não era da tribo. Olhava a linha reta do oceano, a fria e cinzenta linha final. Isobel escrevia cartas para ele. Embora ela nunca o tivesse visto, sabia da sua existência. Os anos foram passando e Isobel esperou, mesmo assim. Esperou que ele cruzasse aquela linha. Esperou e esperou tanto que acabou louca. Numa noite, Isobel saiu do corpo e seguiu para o mar, adentrou o oceano, gelado e profundo. Nunca mais foi vista. Sumiu. Deixou apenas algumas cartas e versos. Dizem que em noites em que o oceano fica liso, parado, silencioso, em que forma uma perfeita linha reta no horizonte, ouve-se uma voz melodiosa falando, como de dentro de uma concha. Dizem que é Isobel, louca, conversando com o amor.


sábado, 26 de fevereiro de 2011

Persuasão



O bar estava ainda vazio quando ela chegou. Empurrou a porta vai-e-vem, se dirigiu para o balcão. Meia luz, meio de lado no banco alto, pediu uma bebida. Vinho branco. Eu era barman nesse pub há mais de 10 anos. Nunca tinha visto algo assim: Ele chegou alguns minutos depois. Trazia um pacote na mão. Os olhos marejados, tocou o ombro dela e sorriu, sem jeito, quando ela se voltou.
- Trouxe o que você me pediu. – deixou o envelope pardo sobre o balcão. 

Vi quando ela não olhou nos olhos dele, fitou a taça minutos infinitos até pra mim. Ela não respondeu. 

Ele disse um adeus mudo, imperceptível. Moveu-se lentamente, olhando-a,  a mão tentou tocar seu cabelo, mas parou. Virou o rosto e passou pela porta, num movimento resoluto.
Fixei meus olhos naquela moça, sentada no balcão, parecendo um aparição solitária, pálida, lívida. Ela estendeu a mão branca e trêmula para o pacote pardo, numa lentidão suprema para mim, observador agora totalmente absorto e excitado. Minha imaginação fervilhou ao pensar nas possibilidades dentro daquele envelope pardo, embora o formato denunciasse o conteúdo: era um livro, só podia ser.
E era mesmo.

Ela o retirou do envelope, um livro pequeno e surrado. Agora abria na primeira página, era dela, pela familiaridade de sua expressão. Rosto calmo, resignado de quem só olha para algo que já conhece bem. De repente algo mudou naquela face delicada e bonita, uma expressão de surpresa. Eu não podia mais me conter de curiosidade e já ia, a pretexto de oferecer outra taça de vinho, me aproximar totalmente da moça. Mas ela desatara agora chorar, uma dor que explodiu em soluços tão fortes que ela largou o livro sobre o balcão e saiu tropeçando na porta vai-e-vem. De dentro do bar ainda pude ouvir seus gritos chamando por ele. Totalmente envolvido pela cena, não pensei duas vezes, corri para fora e vi que ela alcançara o rapaz, afinal. Um abraço, um beijo longo, cheio de lágrimas e palavras atropeladas.

Voltei ao bar correndo, na intenção de devolver ao casal o bendito livro. Mas, quando o tive nas mãos, não pude resistir, li o título Persuasão, de Jane Austen, e abri na página fatídica:

"Você me dilacera a alma. Sou metade esperança, metade desespero. Diga-me que não é tarde demais, que tais sentimentos preciosos não desapareceram completamente. Ofereço-me a você mais uma vez com um coração que lhe pertence ainda mais do que  há oito anos e meio, quando você quase o despedaçou. Não diga que o homem esquece mais depressa que a mulher, que o amor dele morre mais cedo. Eu não amei ninguém se não a si. Posso ter sido injusto. Posso ter sido fraco e rancoroso. Mas nunca inconstante. Vim a Bath unicamente por sua causa. Os meus pensamentos e planos são todos para si. Não reparou nisso? Não se apercebeu dos meus desejos? Se eu tivesse conseguido ler os seus sentimentos, como creio que deve ter decifrado os meus, não teria esperado estes dez dias. Mal consigo escrever. A todo o momento ouço algo que me emociona. Anne baixa a voz, mas eu consigo ouvir os tons dessa voz, mesmo quando os outros não conseguem. Criatura muito boa, muito pura! Faz-nos, de fato, justiça, ao acreditar que os homens são capazes de um verdadeiro afeto e uma verdadeira constância. Creia que esta é fervorosa e firme em F. W. Tenho de ir, inseguro quanto ao meu futuro; mas voltarei, ou seguirei o seu grupo, logo que possível. Uma palavra, um olhar será o suficiente para decidir se irei à casa do seu pai esta noite, ou nunca."

Era a carta de Frederick Wentworth para Anne Elliot. E entendi que nem todo tempo do mundo, nem toda espera, é capaz de destruir um amor verdadeiro.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Tudo certinho, bem



Eu faço tudo errado. Tudo errado mesmo. Eu não causo a boa primeira impressão, aquela que fica. E se ainda assim o sujeito se interessar, trato logo de dizer meus defeitos, tudo sem maquiagem, sem máscaras, sem jogo. Faço tudo errado. Depois, ainda achando que foi pouco, falo dos casos passados, dos amores, das decepções. Eu falo os nomes, as brigas, os motivos das separações. Eu encho o ouvido do cara de lamentações. Eu dou bandeira. E acabo implorando, disfarçadamente, que ele diga que me ama. Tudo, mas tudo mesmo, errado. E, pra finalizar, eu imponho uma tomada de decisão: sim ou não, sem meios termos. O mais errado do errado. E, se depois de tudo isso - desse manual ao contrário - ele ainda me amar e ficar comigo, aí sim, eu faço tudo certinho. Tudo certinho, bem.

Isobel Benandanti

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Isso



Essa coisa que fere e beija. Não sei se quero isso. Essa coisa que dói e não se pode viver sem. Não sei se quero. Essa coisa cheia de garras e asas. Que preenche e deixa. Nunca fica, parte e pousa noutra parte. Não sei se quero isso. De que sem me sinto triste e tendo não me pertence. Isso que parece existir só pros outros. Não sei mesmo se quero. Isso. Essa coisa que ninguém tem coragem de me dar, por medo de me ferir. Sim, talvez eu não queira mesmo isso. Devo, ainda, agradecer meus protetores por não me darem, por me pouparem. Isso também não sei se quero. Isso é morno e queima e marca e sangra e dói. Isso que me sobra. Não mesmo, não quero. Há de haver um dia algo melhor que isso. Alguém que me dê sem que eu peça. Há de haver. E se não houver, talvez eu queira mesmo nada, que é melhor que algo pela metade. E conviverei com isso, como quem aprecia uma paisagem pela janela: com o tempo, olhando sem nada sentir e nada querer.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Tocando estrelas



Em noites como essa, de lua cheia, a velha questão sepultada, de repente desperta. Ergue-se deslumbrante, de sob o manto frio e escuro da terra. À sete palmos, tão poucos para contê-la. Que questão? Não sei dizer. Dela só sinto, é irracional, uma coisa viva, rastejante... Um incômodo constante, um algo qualquer fundamental que não se define nunca. Como um holograma, vejo apenas partes.
Um não sei o que, que vem de não sei onde, entra pela janela, junto com a luz translúcida do astro misterioso. Enche meu coração de um pesar e de um poder que não tem medida, de tão grande e profundo. Vejo-me antes, não sei onde, por conta de algo indefinido e importante, a lutar. Lá onde não sei dizer, encontro-me com outros, com o mesmo ideal magnífico e nos pomos a trabalhar, com afinco, na resolução dessas coisas que me fogem, me fogem à memória - e mais! - fogem-me ao racional e às capacidades limitantes desta linguagem tão pobre.
Mas, sei que dessa sensação fica a certeza de algo lindo, importante. De fazermos há muito. De que o trabalho não terminou ainda. Que sinto saudades de quase tocar, como quem estira a mão até as estrelas numa madrugada à beira-mar. Teto baixo, salpicado de luzes, como se lá tivesse ficado um lar.


Disse-o bem Hilda Hilst: "Me queimo em sonhos, tocando estrelas".

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Jamais saberei...



Foi numa tarde dessas, de por-do-sol-perfeito.
Eu passava de um lado para o outro da avenida, pela passarela. Ponte sobre um rio veloz, cheio de luzes e sons ininterruptos, próprios das cidades quando cai o lusco-fusco do dia e da jornada diária. Era então, aquele momento em que não é dia nem noite, que ainda resta alguma luz, tênue e opaca, como um véu. Eu seguia na passarela tendo algumas pessoas na minha frente, feito rumo, bússola de quem só vai seguindo, deixando o fluxo humano levar. As vezes é bom... às vezes é num momento assim que ocorre a magia. E ocorreu.
Quando uma dessas pessoas se deslocou para a direita, à minha frente, vi uma moça de camiseta regata e short, tatuagem nas costas, atrás do ombro direito. O que era mesmo o desenho? Precisei esperar outra mudança no fluxo humano e lá estava: um olho chorando.
Fiquei alguns minutos fixando aquela imagem estranha. Não era um símbolo místico ou religioso como o olho de Órus, o deus egípcio; também não era o “olho que tudo vê”, aquele que se encontra sobre uma pirâmide nas notas de dólar e na simbologia maçônica.
Era um olho simples, com três ou quatro gotas a escorrer numa fileirinha. Tatuagem mixuruca - diga-se de passagem - podia muito bem ser apenas um desenho tosco de criança. Mas que impacto me causou!
Tenho um péssimo hábito, um dom, um sei-lá-o-que que me faz viajar nessas coisas. E lá fiquei pensando enquanto andava atrás da moça, e depois, e até hoje: porque alguém tatuaria um olho chorando nas costas? Por que, meus deuses, por que?
Foi um motivo triste? Parece, já que o olho está chorando. Mas, esse momento um dia passaria, será que a moça não levou isso em conta ao eternizar essa tristeza? Aí, me deparei com a possibilidade de ser uma tristeza que não passa! Uma morte, será? Alguém como uma mãe ou um pai, ou ainda um amor que ela perdeu para a senhora da foice? Realmente triste...
A verdade é que jamais saberei. A moça desceu a passarela, virou para a esquerda e adentrou o shopping Center aparentemente feliz, com seu shortinho jeans e regata, como se a tatuagem nem mesmo existisse. Aquela tristeza por certo só era lembrada por quem a via pelas costas, ou ela mesma forçando a visão num espelho. É... talvez seja uma boa maneira de lidar com a tristeza...

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Que comece agora.


"Que comece agora. E que seja permanente essa vontade de ir além daquilo que me espera. E que eu espero também. Uma vontade de ser. Àquela, que nasceu comigo e que me arrasta até a borda pra ver as flores que deixei de rastro pelo caminho. Que me dê cadência das atitudes na hora de agir. Que eu saiba puxar lá do fundo do baú, o jeito de sorrir pros nãos da vida. Que as perdas sejam medidas em milímetros e que todo ganho não possa ser medido por fita métrica nem contado em reais. Que minha bolsa esteja cheia de papéis coloridos e desenhados à giz de cera pelo anjo que mora comigo. Que as relações criadas sejam honestamente mantidas e seladas com abraços longos. Que eu possa também abrir espaço pra cultivar a todo instante as sementes do bem e da felicidade de quem não importa quem seja ou do mal que tenha feito para mim. Que a vida me ensine a amar cada vez mais, de um jeito mais leve. Que o respeito comigo mesma seja sempre obedecido com a paz de quem está se encontrando e se conhecendo com um coração maior. Um encontro com a vontade de paz e o desejo de viver."

Caio Fernando Abreu

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Antiga e eterna poesia


Onde a saudade acaba

Que saudade eu sinto, meu amor
De tudo que ainda não vivi e lembro
De tudo que me arrependo e repito
Que saudade de teus olhos aflitos
Diante da minha excitação

Que saudade do que ainda não vivi
Meu amor, que saudade

Não sinto o gosto de tudo
Minha boca só tem teu gosto
Meu corpo só tem teu cheiro
Que saudade de teus dedos

Que saudade do que ainda não vivi
Meu amor, que saudade

Tens me visto na noite
Em fuga de tudo que dói
Uma dor misturada com prazer
Um querer sem querer
Que saudade de teus braços a me envolver
Dos movimentos de tuas mãos

Que saudade do que ainda não vivi
Meu amor, que saudade

Que vontade de me jogar no absurdo
De fugir para o infinito
De gritar sem parar
Que saudade do teu gemido
Do teu corpo em febre a me acompanhar

Que saudade do que ainda não vivi
Meu amor, que saudade

A floresta é teu refúgio
Aqui estás protegido
Vens que te levarei a um lugar escondido
Que até hoje ninguém encontrou
E está saudade que ainda vivo
Há de ficar para sempre no infinito
Dos versos que o poeta deixou

Mesmo que o amanhã seja incerto
Que eu continue de ti tão longe e tão perto
Que você seja só uma miragem
Quero que conheças meu lugar mágico
Onde me refugio para fugir da realidade
Onde esta saudade acaba
Onde o poeta encontra seu mundo e sua casa.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011



Em que caso a relação com a vida deve ser um endurecimento, em que caso uma submissão, em que momento trata-se de se revoltar, em que momento se render, ou ficar impassível,  e quando é necessário uma palavra seca, quando uma exuberância ou um divertimento?

Deleuze e Guatarri

 

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O clítores: esse grande desconhecido


Mulheres (e homens), acabei de assistir ao interessantíssimo documentário El clítoris: ese gran desconocido

Foi diponibilizado no Blog Aflora Mulher da querida ancoradora da Lua nova pelo Círculo Sagrado de Visões Femininas no Chile Maria José e compartilhado na lista da hermana Danielle Sales, "Ciclos Naturais do Feminino". 

Quanto prazer foi negado à mulher esses séculos todos hein? Vamos mudar isso, conheçam seus corpos e sejam mais felizes!


PARA LER: 
O Anatomista. Federico Andahazi. 

Olá pessoas!
Estou muito feliz, o CasaBruxal agora faz parte do portal Ciranda das mulheres sábias ! Uma iniciativa muito legal e importante das mulhers sábias Rachel (SP) e Luciana (MA). O projeto é inicialmente um espaço dedicado à aproximação entre mulheres que focalizam a espiritualidade sob a ótica do feminino. Na verdade, é uma mina de ótimos blogs nacionais e internacionais, engajados em diversas esferas como o eco-feminismo, a ecologia, o xamanismo, bruxaria, paganismo, ancestralidade, como também o universo das mulheres, seus interesses e práticas. o objetivo principal é sem dúvida tirar as muheres da alienação e fazê-las mais consciêntes da beleza e privilégio de ser mulher.

Eis o que dizem as mulheres sábias lá no portal:


Em construção um partir rumo a encontros in loco entre mulheres que desejam criar elos com outras em torno ao universo do feminino.

O nome do Blog/Diretório é  o título de um livro inspirador da escritora Clarissa Pinkola Estés.
Dela mesma "Mulheres que correm com os lobos".

No seu Ciranda ela aborda as falas de mulheres sábias, sabedoria advinda com o tempo e a experimentação.

Entretanto nossa Ciranda deseja interconectar as mulheres sábias de todas as idades.

Pensamos em encontros sem conotação religiosa, sem um credo que oficialmente o apadrinhe, mas sim em um momento/espaço para trocar pensamentos/falas sobre aquilo que deixamos adormecido em nossas almas, mentes e corpos, e que como mulheres devemos e temos direito de exteriorizar...

Falas que sempre entrelaçam em si os "n" mundos que carregamos, nossos mundos físicos, mentais e espirituais.

Há hoje em dia uma releitura muito ampla sobre o que venha a ser a Espiritualidade, este conceito não é mais entendido como apenas um instante de oração, de visita a um espaço físico constituído como sacro. 

A Espiritualidade é para o mundo do hoje a vivência íntima de conexão com nosso eu, e aquilo que entendemos como Superior,  que perpassa nossos corpos e se estende ao nosso mundo, desde o mais simples ao mais intrincado sentir e fazer.

Às vezes pequenos encontros sem pretensões cósmicas podem nos surpreender, e render encontros que encerram em si uma magnitude e intensidade impossível de mensurar...

Foi  pensando facilitar um encontro onde a fala aconteça em meio a um ambiente que permita essa descontração, que escolhemos as cozinhas!
E é na cozinha onde podemos fazer acontecer a magia do fazer um alimento que nutra a alma, e os corpos, de forma sadia e leve.
Um chá, um chocolate, o elaborar esse instante, congregar sabores e cores distintos, permite esse encontro.

Logo a proposta é essa, um convite para um chá, onde além de agradar o paladar, irá ser alimentado o intelecto, a troca de pensamentos, entre mulheres sábias.

Isto é a Ciranda das Mulheres Sábias...

E com este nome foi decidido passar das falas rumo à ação.
Falar e fazer acontecer.

Você mora em São Luís-MA? 
Entre em contato. 

Por ora o ponta pé inicial, o laboratório experimental do nosso ideário será aqui em São Luís, Maranhão.


Em construção a Ciranda das Mulheres Sábias: encontros para diálogos entre mulheres.
Em construção, por acreditar que é devagar que poderemos atingir a coesão e consistência.


Luciana e Rachel





(ideário concebido numa noite do mês de fevereiro de 2010, entre Cirandeiras que sonham e realizam...)

Ficou interessada? Aguarde novidades para Natal/RN!