domingo, 27 de março de 2011

A grande aventura


Já havia decidido: essa coisa de amor não serve mais. Só leva a infelicidade e decepções. Ela sempre estivera com o coração na mão, oferecendo-o, como se fosse um artigo barato. O amor é uma  dessas coisas que nos prendem a um círculo vicioso de paixões – especialmente de paixões por homens! – que ela deixaria para trás. Era o ponto final.
Organizou tudo. Vendeu a casa e o carro. Comprou uma mochila. Sairia pelo mundo, para encontrar a grande aventura espiritual, libertadora e que daria sentido à sua vida. Na bagagem tão simples levaria apenas o fundamental. Que fosse prático e leve o suficiente, leve como deveria estar seu peito. Estava tudo muito bem traçado, mapas e direções.
Seguindo o roteiro cuidadosamente planejado, ela jogou a mochila nas costas e tomou um taxi para o aeroporto. Finalmente daria o primeiro passo rumo à grande aventura, viveria as experiências transpessoais, evolutivas, espirituais, no caminho da evolução. Seria com certeza uma pessoa melhor!
Dirigiu-se ao balcão da companhia e, assim que se posicionou na fila, ouviu alguém chamando desesperadamente seu nome. Em meio a uma confusão, ela viu que ele corria por entre as pessoas e seus carrinhos de bagagens. Ele gritava seu nome com lágrimas nos olhos, achando que não daria mais tempo de dizer a ela tudo que não havia dito aqueles anos todos. Ao vê-lo, a moça compreendeu a essência das coisas, teve o maior e inesperado choque possível a alguém tão decidido: soube imediatamente que a grande aventura, cheia de experiências que fariam dela uma pessoa melhor, nunca estivera lá fora, em algum lugar, esperando por ela. Mas sim que sempre viria até ela, correndo e chamando seu nome, e estaria onde ela estivesse. E que o amor era a única coisa que não poderia faltar na sua bagagem, fosse ela uma mala ou uma simples mochila.

quinta-feira, 24 de março de 2011

O feitiço entorpecente da palavra



Maleáveis, labirínticas e singelas as palavras desse feitiço. Profanas exclamações hipnotizantes.
Compor. Tecer. Reagrupar.
Em desarmonia perfeita, reverto a seqüência lógica. Forço a cristalização clara das palavras desse feitiço.
O mundo é forma.
Toco a essência íntima e fértil que pulsa.
Criar. Moldar. Encarnar.
Chego ao ponto que une as partes. Leitura diagramada irreal das palavras desse feitiço.
Cruzar. Mimetizar. Falar.
Declamo com os pássaros na Língua Antiga. Ziiiiibilosa partícula, meu centro.
Maleáveis, labirínticas e singelas palavras desse feitiço. Gotejando sons hipnotizantes.
Um glamour. Um disfarce. Uma máscara mágica.
O mundo é forma.
Eu centro e partícula. Fertilizando outras mentes de palavras/essências.
Deixo o som a reverberar...

sábado, 19 de março de 2011

A carga da Deusa

 
Também chamado de “O chamado da deusa”, “Os encargos da Deusa”, “O papel da Deusa” e “Exortação da Deusa”, foi escrito originalmente por Gerald Gardner em 1949, inspirado nos textos de Charles G. Leland em seu livro “Aradia”. Anos mais tarde, Doreen Valiente, iniciada por Gardner, reescreveu a versão que ficou mundialmente famosa.
Ouçam as palavras da Grande Mãe, que, em tempos idos, era chamada de Ártemis, Astartéia, Dione, Melusiana, Afrodite, Ceridwen, Diana, Arionrhod, Brígida e por muitos outros nomes:
Quando necessitar de alguma coisa, uma vez no mês, e é melhor que seja quando a lua estiver cheia, deverá reunir-se em algum local secreto e adorar o meu espírito que é a rainha de todos os sábios. Você estará livre da escravidão e, como um sinal de sua liberdade, apresentar-se-á nu em seus ritos. Cante, festeje, dance, faça música e amor, todos em minha presença, pois meu é o êxtase do espírito e minha também é a alegria sobre a terra. Pois minha lei é a do amor para todos os seres. Meu é o segredo que abre a porta da juventude e minha é a taça do vinho da vida, que é o caldeirão de Ceridwen, que é o gral sagrado da imortalidade. Eu concedo a sabedoria do espírito eterno e, além da morte, dou a paz e a liberdade e o reencontro com aqueles que se foram antes. Nem tampouco exijo algum tipo de sacrifício, pois saiba, eu sou a mãe de todas as coisa e meu amor é derramado sobre a terra.
Atente para as palavras da Deusa estelar, o pó de cujos pés abrigam-se o sol, a lua, as estrelas, os anjos, e cujo corpo envolve o universo:
Eu que sou a beleza da terra verde e da lua branca entre as estrelas e os mistérios da água, invoco seu espírito para que desperte e venha até a mim. Pois eu sou o espírito da natureza que dá vida ao universo. De mim todas as coisa vêm e pra mim todas devem retornar. Que a adoração a mim esteja no coração que rejubila, pois, saiba, todos os atos de amor e prazer são meus rituais. Que haja beleza e força, poder e compaixão, honra e humildade, júbilo e reverência, dentro de você. E você que busca conhecer-me, saiba que sua procura e ânsia serão em vão, a menos que você conheça os mistérios: pois se aquilo que busca não se encontrar dentro de você, nunca o achará fora de si. Saiba, pois, eu estou com você desde o início dos tempos, e eu sou aquela que é alcançada ao fim do desejo.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Quando falas


Falas Luciana
E parece que uma delicada flor vem planando
no ar
E, de leve pousa no meu colo

Falas Luciana
E está delicadeza pousa nos meu lábios
fluida como um rio

Com suavidade
Falas Luciana
E sinto envolver-me uma lareira acolhedora,
mesmo que tudo pareça frio

E se ainda,
Falas Luciana
Com uma dor gostosa,
sinto a paz do caminho de onde vêem tantas delicadas flores.

sábado, 12 de março de 2011

Gatos e polegares opositores

O sacrifício do momento

À captura de um momento,
aquele instante que muda tudo.
ela tocou em seu braço, sorriu.
Houve um silêncio, um absoluto silêncio, antes do mergulho.

À procura do lance de dados,
a jogada certa. A sorte boa, no giro da roda.
Mais silêncio. Uma cortada.
Cartas não mentem, nem olhos...

O transcendental dia-a-dia.
À espera, resoluta.
Na captura, o momento é sacrificado em honra aos mortos.
Nada faz sentido. Tudo se encaixa perfeitamente.

Súbito, horrenda calma. Consciência!
Um grito esquecido na gaveta da cômoda, por trás do trinco da porta.

Ela procura de novo o braço dele, o toque, um mísero olhar.
Que seja...
À espera, continua...
O momento se estira e se derrete como o relógio do poeta e do louco.
A loucura das horas.

Nada (tic)
Tudo (tac)
...

quarta-feira, 9 de março de 2011

Oração da Mulher Sagrada



"Sagrada Força Feminina te saúdo e sinto tua presença se manifestando em meu Ser
Através de meus pensamentos, palavras e ações
Deixo que a Divina Presença da Mãe Cósmica me oriente com sua infinita sabedoria
Ela está chegando, sinto sua Dança!
Ela está falando, ouço sua canção de Amor!
Ela está dentro e fora nas coisas mais simples e por isso perfeitas
E seu templo sagrado é meu corpo de Mulher
Seu pensamento agora é meu pensamento
E só penso em Amor,
Só sinto Amor
E só vejo Amor
O mundo que percebo é fruto da minha percepção de Amor
E assim crio a minha realidade
Abençôo meu dia e honro minha Deusa de mil nomes
E assim crio a magia que me ilumina e protege
Saúdo a noite e honro minha Mãe Lua, suas sagradas fases comandam meu corpo de mulher
E assim me preservo saudável e com meus ciclos femininos em perfeita harmonia.
Saúdo a Incognoscível, e assim honro e preservo meu poder oculto.
Saúdo as Forças da Natureza para que a Mãe Terra me proteja
E me oriente no Norte, no Sul, no Leste e no Oeste.
Honro a terra onde piso, a água que bebo e o meu alimento,
Pois sei que tudo que fizer a esta Terra voltará para mim e para meus descendentes.
E assim me conecto ao coração de Gaia e a sua proteção maternal.
A Deusa cuida do meu corpo e da minha alma
E assim estou em perfeita sincronia com o Universo
Do meu coração flui seus ensinamentos, suas palavras de sabedoria e sua força infinita
E assim realizo minha divindade humana
Em minha alma o Sagrado Feminino e o Sagrado Masculino se uniram em Amor e Êxtase
E assim descobri o equilíbrio onde o ser humano deve estar
Todo o Amor que nutre minha existência vem da Fonte Divina
Por isso não preciso que nenhum ser humano o faça por mim
A Deusa abençoa meu corpo com seus sagrados encantos
E assim a beleza da minha Alma se reflete em meu corpo feminino
Da minha mente fluem os pensamentos e a criatividade
que fazem minha existência ser especial e singular
E assim realizo minha vocação maior
Preservo meu coração limpo e leve como uma pena
E assim me permito ser livre e feliz para sempre
E que Assim Seja, porque Assim É"

Por Carla Lampert.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Inteira



- Dizem que sou meio louca. Sei lá mais o quê! Como se pode ser meio louca? Porque eu meio falo tudo que penso; meio me coloco (no meio?); eu meio me escondo; ou eu meio me mostro. Não sei... talvez eu seja toda louca. A loucura dos corajosos ou dos covardes ao extremo. Essa coisa que dá no meio do peito, ou no meio das pernas, que arrepia a pele, e faz com que eu me jogue.  Ninguém meio se joga. Depois da adrenalina, curto a sensação. E me jogo de novo. Sei lá o que me faz inteira! E sendo assim, eu nunca poderia ser meio louca, mas louca total.  Até dizer essas coisas, que não sei nem porque digo, me fazem ser também. Como se as palavras tentassem tocar em vão, o que vai além do que é lógico, do que é são. Vê como rima: vão e são? - E levantou do divã e pegou a bolsa e sacudiu os cabelos e bateu a porta e nunca mais voltou.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Quatro Quartetos

 
I

O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstracção
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo do corredor que não seguimos
Em direcção à porta que nunca abrimos
Para o roseiral. As minhas palavres ecoam
Assim, no teu espirito.
                                Mas para quê
Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
Não sei.
                         Outros ecos
Habitam o jardim. Vamos segui-los?
Depressa, disse a ave, procura-os, procura-os,
Na volta do caminho. Através do primeiro portão,
No nosso primeiro mundo, seguiremos
O chamariz do tordo? No nosso primeiro mundo.
Ali estavam eles, dignos, invisiveis,
Movendo-se sem pressão, sobre as folhas mortas,
No calor do outono, através do ar vibrante,
E a ave chamou, em resposta à
Música não ouvida dissimulada nos arbustos,
E o olhar oculto cruzou o espaço, pois as rosas
Tinham o ar de flores que são olhadas.
Ali estavam como nossos convidados, recebidos e recebendo.
Assim nos movemos com eles, em cerimonioso cortejo,
Ao longo da alameda deserta, no círculo de buxo,
Para espreitar o lago vazio.
Lago seco, cimento seco, contornos castanhos,
E o lago encheu-se com água feita de luz do sol,
E os lótus elevaram-se, devagar, devagar,
A superfície cintilava no coração da luz,
E eles estavam atrás de nós, reflectidos no lago.
Depois uma nuvem passou, e o lago ficou vazio.
Vai, disse a ave, pois as folhas estavam cheias de crianças,
Escondendo-se excitadamente.. contendo o riso.
Vai, vai, vai, disse a ave: o género humano
Não pode suportar muita realidade.
O tempo passado e o tempo futuro
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.

II

Alhos e safiras na lama
Coagulam o eixo fixo.
O arame que vibra no sangue
Canta sob inventeradas cicatrizes
Apaziguando guerras há muito esquecidas.
A dança ao longo da artéria
A circulação da linfa
Estão representadas no rumo dos astros
Elevam-se ao verão na árvore
Nós movemo-nos acima da árvore em movimento
Na luz sobre a folha imaginada
E ouvimos no solo molhado
Lá em baixo, o cão de caça e o javali
Prosseguirem o seu ciclo como antes
Mas reconciliados no meio dos astros.



No ponto morto do mundo em rotação. Nem came nem
        espírito;
Nem de nem para; no ponto morto, aí está a dança,
Mas nem paragem nem movimento. E não se chame a isso
        fixidez,
Onde o passado e o futuro se reúnem. Nem movimento de
         nem para,
Nem ascensâo nem declínio. Se não fosse o ponto, o ponto
         morto,
Não haveria dança, e há só a dança.
Eu apenas posso dizer, estivemos ali: mas não posso dizer onde.
E não posso dizer por quanto tempo, pois seria situar isso no tempo.
A liberdade interior do desejo prático,
A libertação de acção e sofrimento, libertação da compulsão
Interior e exterior, e no entanto tendo à volta
Uma graça de sentido, uma luz branca em repouso e em movimento,
Erhebung sem movimento, concentração
Sem eliminação, ao mesmo tempo um novo mundo
E o velho tomado explícito, compreendida
No remate do seu êxtase parcial
A resolução do seu horror parcial.
Todavia o encadeamento de passado e futuro
Tecido na fraqueza do corpo em mutação
Protege a humanidade do céu e da danação
Que a carne não pode suportar.
                                     O tempo passado e o tempo futuro
Apenas concedem um pouco de consciência.
Estar consciente é não estar no tempo
Mas apenas no tempo podem o momento no roseiral,
O momento no caramanchel onde a chuva batia,
O momento na igreja desabrigada ao entardecer
Ser lembrados; envolvidos em passado e futuro.
Apenas pelo tempo o tempo é conquistado.

III

Este é um lugar de desafeição
O tempo antes e o tempo depois
Numa luz sombria: nem luz do dia
Investindo a forma de lúcida quietude
Transformando a sombra em efémera beleza
Com vagarosa rotação sugerindo permanência
Nem escuridão para purificar a alma
Esvaziando o sensual pela privação
Purificando a afeição do temporal.
Nem plenitude nem vazio. Apenas um tremeluzir
Sobre os rostos tensos devastados pelo tempo
Distraídos da distracção pela dístracção
Cheios de fantasias e vazios de sentido
Túmida apatia sem concentração
Homens e pedaços de papel remolnhando no vento frio
Que sopra antes e depois do tempo,
Vento que entra e sai de pulmões viciados
Tempo antes e tempo depois.
Eructação de almas doentias
No ar desbotado, os miasmas
Levados no vento que varre os sombrios montes de Londres,
Hampstead e Clerkenwell, Campden e Putney,
Hihgate, Primrose e Ludgate. Não aqui
Não aqui a escuridão, neste mundo de agitadas vozes.

Desce mais, desce apenas
Ao mundo da solidão perpétua,
Mundo não mundo, mas aquilo que não é mundo,
Escuridão interna, privação
E destituição de toda a propriedade,
Dissecação do mundo do sentido,
Evacuação do mundo da fantasia,
Inoperância do mundo do espírito;
Estee é um dos caminhos, e o outro
É o mesmo, não em movimento
Mas abstenção de movimento; enquanto o mundo se move
Em apetência, nos seus caminhos metalizados
Do tempo passado e do tempo futuro.

IV

O tempo e o sino enterraram o dia,
A nuvem negra arrebata o sol.
Irá voltar-se para nós o girassol, a clematite
Desprender-se, debruçar-se; irão a gavinha e a vergôntea
Unir-se e aderir?
Os frígidos
Dedos do teixo descerão
Para nos envolver? Depois da asa do alcião
Ter respondido à luz com a luz e calar-se, a luz está em repouso
No ponto morto do mundo em rotação.

V

As palavras movem-se, a música move-se
Apenas no tempo; mas o que apenas vive
Apenas pode morrer. As palavras, depois de ditas,
Alcançam o silêncio. Apenas pela forma, pelo molde,
Podem as palavras ou a música alcançar
O repouso, tal como uma jarra chinesa ainda
Se move perpetuamente no seu repouso.
Não o repouso do violino, enquanto a nota dura,
Não isso apenas, mas a coexistência,
Ou digamos que o fim precede o princípio,
E que o fim e o princípio estiveram sempre ali
Antes do princípio e depois do fim.
E tudo é sempre agora. As palavras deformam-se,
Estalam e quebram-se por vezes, sob o fardo,
Sob a tensão, escorregam, deslizam, perecem,
Definham com imprecisão, não se mantêm,
Não ficam em repouso. Vozes estridentes
Ralhando, troçando, ou apenas tagarelando,
Assaltam-nas sempre. O Verbo no deserto
É muito atacado por vozes de tentação,
A sombra que chora na dança funérea,
O clamoroso lamento da quimera desconsolada.

O detalhe do molde é movimento,
Como na figura dos dez degraus.
O próprio desejo é movimento
Não desejável em si;
O próprio amor é inamovível,
Apenas a causa e o fim do movimento,
Intemporal, e sem desejo
Excepto no aspecto do tempo
Capturado sob a fonna de limitação
Entre o não ser e o ser.
De repente num raio de sol
Mesmo enquanto se move a poeira
Eleva-se o riso escondido
De crianças na folhagem
Depressa, aqui, agora, sempre-
Ridículo o triste tempo inútil
Que se estende antes e depois.



T.S. Elliot
Quatro Quartetos