sábado, 26 de fevereiro de 2011

Persuasão



O bar estava ainda vazio quando ela chegou. Empurrou a porta vai-e-vem, se dirigiu para o balcão. Meia luz, meio de lado no banco alto, pediu uma bebida. Vinho branco. Eu era barman nesse pub há mais de 10 anos. Nunca tinha visto algo assim: Ele chegou alguns minutos depois. Trazia um pacote na mão. Os olhos marejados, tocou o ombro dela e sorriu, sem jeito, quando ela se voltou.
- Trouxe o que você me pediu. – deixou o envelope pardo sobre o balcão. 

Vi quando ela não olhou nos olhos dele, fitou a taça minutos infinitos até pra mim. Ela não respondeu. 

Ele disse um adeus mudo, imperceptível. Moveu-se lentamente, olhando-a,  a mão tentou tocar seu cabelo, mas parou. Virou o rosto e passou pela porta, num movimento resoluto.
Fixei meus olhos naquela moça, sentada no balcão, parecendo um aparição solitária, pálida, lívida. Ela estendeu a mão branca e trêmula para o pacote pardo, numa lentidão suprema para mim, observador agora totalmente absorto e excitado. Minha imaginação fervilhou ao pensar nas possibilidades dentro daquele envelope pardo, embora o formato denunciasse o conteúdo: era um livro, só podia ser.
E era mesmo.

Ela o retirou do envelope, um livro pequeno e surrado. Agora abria na primeira página, era dela, pela familiaridade de sua expressão. Rosto calmo, resignado de quem só olha para algo que já conhece bem. De repente algo mudou naquela face delicada e bonita, uma expressão de surpresa. Eu não podia mais me conter de curiosidade e já ia, a pretexto de oferecer outra taça de vinho, me aproximar totalmente da moça. Mas ela desatara agora chorar, uma dor que explodiu em soluços tão fortes que ela largou o livro sobre o balcão e saiu tropeçando na porta vai-e-vem. De dentro do bar ainda pude ouvir seus gritos chamando por ele. Totalmente envolvido pela cena, não pensei duas vezes, corri para fora e vi que ela alcançara o rapaz, afinal. Um abraço, um beijo longo, cheio de lágrimas e palavras atropeladas.

Voltei ao bar correndo, na intenção de devolver ao casal o bendito livro. Mas, quando o tive nas mãos, não pude resistir, li o título Persuasão, de Jane Austen, e abri na página fatídica:

"Você me dilacera a alma. Sou metade esperança, metade desespero. Diga-me que não é tarde demais, que tais sentimentos preciosos não desapareceram completamente. Ofereço-me a você mais uma vez com um coração que lhe pertence ainda mais do que  há oito anos e meio, quando você quase o despedaçou. Não diga que o homem esquece mais depressa que a mulher, que o amor dele morre mais cedo. Eu não amei ninguém se não a si. Posso ter sido injusto. Posso ter sido fraco e rancoroso. Mas nunca inconstante. Vim a Bath unicamente por sua causa. Os meus pensamentos e planos são todos para si. Não reparou nisso? Não se apercebeu dos meus desejos? Se eu tivesse conseguido ler os seus sentimentos, como creio que deve ter decifrado os meus, não teria esperado estes dez dias. Mal consigo escrever. A todo o momento ouço algo que me emociona. Anne baixa a voz, mas eu consigo ouvir os tons dessa voz, mesmo quando os outros não conseguem. Criatura muito boa, muito pura! Faz-nos, de fato, justiça, ao acreditar que os homens são capazes de um verdadeiro afeto e uma verdadeira constância. Creia que esta é fervorosa e firme em F. W. Tenho de ir, inseguro quanto ao meu futuro; mas voltarei, ou seguirei o seu grupo, logo que possível. Uma palavra, um olhar será o suficiente para decidir se irei à casa do seu pai esta noite, ou nunca."

Era a carta de Frederick Wentworth para Anne Elliot. E entendi que nem todo tempo do mundo, nem toda espera, é capaz de destruir um amor verdadeiro.

2 comentários:

  1. SHOW... cria bastante expectativa e não desaponta quando acontece a revelação... e o pacote me fez lembrar do CARLOS HEITOR CONY em seu livro QUASE MEMÓRIA.

    TENHA UMA ÓTIMA SEMANA PRÉ-CARNAVAL, embora eu desconfie que vc não curte muito essa festa... será?

    JOPZ

    ResponderExcluir
  2. Jopz, li também esse texto do Cony, gosto muito do estilo dele. Sugiro que assista o filme A casa do lago.
    Não curto carnaval, prefiro o sossego mesmo. Boa semana para você também!

    ResponderExcluir