terça-feira, 3 de abril de 2012

A Deusa de dez mil nomes - Parte I


“Eu sou tudo que foi,
tudo que é e tudo o que será,
e meu véu, nenhum mortal ainda o suspendeu”.
Inscrição no santuário da Deusa Ísis[1].


A Deusa-Mãe do Egeu
A primeira associação que se fez da Deusa na história das religiões no Ocidente foi com a imagem da Mãe. A Mãe-Terra para os povos caçadores-coletores e, posteriormente, a Mãe-Terra esposa do Pai-Céu para os povos agricultores (ELIADE, 1998). Segundo Joseph Campbell (1999) a floração básica da civilização ocidental ocorreu nos grandes vales dos rios Nilo, Tigre-Eufrates, Indo, e posteriormente Ganges[2] onde a Deusa era soberana. A partir do quarto milênio antes de Cristo os indo-europeus começaram a descer do norte e do sul, destruindo cidades da noite para o dia. Neste processo trouxeram sua mitologia de orientação masculina e guerreira que foi sendo imposta através da invasão e da guerra aos povos que estavam ao longo do seu trajeto. E a Deusa foi relegada a segundo plano.
Os invasores semitas eram pastores de cabras e ovelhas, os indo-europeus eram pastores de gado. Ambos primitivamente, eram caçadores, de modo que também eram assassinos, nômades e adoradores de deuses guerreiros, “lançadores de raios, como Zeus ou Jeová” (CAMPBELL, 1999, p. 180). O mito de Tiamat nada mais é do que a narrativa metafórica desse processo. Tiamat, o Abismo, a Fonte inexaurível é morta por Marduk, o deus babilônico de então, e seu corpo despedaçado passa a enfeitar os céus. Segundo Campbell a proeza de Marduk se constitui, na verdade, num ato de suprema revogação, pois na mitologia da Deusa ela própria já é o universo, os céus. “Mas o mito de orientação masculina se impõe, e ele se torna, aparentemente, o criador[3]” (1999, p.180).
No processo de imposição dos mitos indo-europeus sobre os dos povos das margens do Egeu, o também mitólogo Robert Graves (2003), acredita que há uma estreita conexão entre os primitivos mitos dos hebreus, dos gregos e dos celtas que consiste no fato de que todas as três raças foram civilizadas pelo mesmo povo do mar do Egeu, que não só as conquistou como as absorveu. Graves chama atenção (p. 81):
Isto não é meramente de interesse arqueológico, pois o apelo popular do catolicismo moderno reside, apesar da Trindade patriarcal e do sacerdócio exclusivamente masculino, na tradição religiosa egéia da Mãe e do Filho, à qual preferiu inclinar-se lentamente mais do que a seus elementos aramaicos ou indo-europeus do “deus-guerreiro”[4].
Campbell, por sua vez, cita um Upanixade de cerca do século VII a.C., época exata em que a Deusa começava a surgir também na região do Egeu. Este texto sagrado narra o encontro surpreendente dos deuses védicos com uma coisa estranha e amorfa no caminho, uma espécie de neblina fumarenta, como passa a narrar o próprio Campbell (1990, p. 191):
“O que é isso?” Nenhum deles sabe o que poderia ser. Então um deles sugere: “vou descobrir o que é”. Esse, então, se dirige àquela coisa esfumaçada e diz: “Eu sou Agni, o Senhor do Fogo; posso queimar qualquer coisa. Quem é você?” E do meio da espessa neblina sai voando um pedaço de palha, que cai no chão, e uma voz diz: “Vamos ver você queimar isso”. Agni descobre que não é capaz de fazê-lo. Ele então retorna até onde estão os outros deuses e diz: “Isso sem dúvida é muito estranho!” “Bem, então”, diz o Senhor do Vento, “deixe-me tentar”. Ele vai e a cena se repete. “Eu sou Vayu, Senhor do Vento, posso arrastar qualquer coisa”. Outra vez uma palha é jogada ao chão. “Vamos ver se você pode arrastar isso”. Ele não consegue, e retorna. Então Indra, o maior dos deuses védicos, se aproxima, mas, ao chegar perto, a aparição se desfaz e em seu lugar surge uma mulher, uma bela e misteriosa mulher, que se dirige aos deuses, revelando-lhes o mistério que fundamenta a eles próprios. “Este é o supremo mistério de todo o ser”, ela lhes diz, “do qual vocês próprios receberam os seus poderes. E Ele pode pôr em ação os seus poderes ou neutralizá-los, conforme deseje”. O nome hindu para esse Ser de todos os seres é Brahman, que é uma palavra neutra, nem masculina, nem feminina. E o nome hindu para essa mulher é Maya-Shakti-Devi, ‘Deusa Doadora de Vida e Mãe de Todas as Formas’. E nesse Upanixade ela aparece como aquela que ensina aos deuses védicos sobre o fundamento e a fonte suprema do seu próprio ser e dos seus próprios poderes.
Essa visão da Deusa como uma mulher doadora de formas e que sabe de onde elas provêm, ou seja, daquilo que está além do feminino ou do masculino, além do ser e do não-ser, do que é e ao mesmo tempo não é, que está além de todas as categorias da mente e do pensamento é completamente atual. Milênios de patriarcado e séculos de desenvolvimento tecnológico, não destruíram o aspecto essencial da divindade que surgiu às margens do Egeu. Campbell enxerga, diante das descobertas científicas, que a mitologia da Deusa tanto não morreu como esta voltando. Que ela não perdeu seu significado original, mas ganhou uma nova perspectiva mais abrangente.

A Deusa como matriz geradora de formas
A Deusa passa a ser compreendida não mais como apenas a Mãe-Terra que produz a partir da matéria, mas como a própria origem de tudo, a matriz, o campo que produz tudo, como no texto Upanixade. Segundo Campbell, as descobertas científicas não mataram o mito. “Ah, eu acho que o mito esta voltando. Há um jovem cientista, hoje, que esta usando a expressão ‘campo morfogenético’, o campo que produz formas. Eis o que a Deusa é, o campo que produz formas” (CAMPBELL, p. 179, 1990).
O jovem cientista ao qual Campbell se refere é Rupert Sheldrake, biólogo que sugere a existência de uma memória inerente a todo organismo, que ele chama de campo mórfico ou morfogenético. Um padrão de repetição que ocorre à medida que o tempo passa e que cada tipo de organismo forma uma memória específica, coletiva e cumulativa. De acordo com Sheldrake (1994), as regularidades da natureza são, dessa forma, habituais e as coisas são como sempre foram, o universo, por sua vez, é um sistema de hábitos em evolução. “Uma coisa que está clara”, diz Sheldrake, “é o fato de que o caos é feminino, e que a criação a partir do caos se parece com a criação a partir do útero, uma potencialidade que tudo contém e que emerge da escuridão” (p.73).

Por Luciana Carlos Celestino 
Referências
ABRAHAM, Ralph; McKENA, Terence; SHELDRAKE, Rupert. Caos, criatividade e o retorno do sagrado: triálogos nas fronteiras do Ocidente. Trad.: Newton R. Eichenberg. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1994.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad.: Carlos F. Moisés. São Paulo: Palas Atena, 1990.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces.Trad.: Adail U. Sobral. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1995.
ELIADE, Mircea. Tratado de historia das religiões. Trad.: Fernando Tomaz e Matália Nunes. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
EISLER, Riane. O cálice e a espada: nossa história, nosso futuro. Trad.: Terezinha Santos. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
GRAVES, Robert. A Deusa Branca: uma gramática histórica do mito poético. Trad.: Bento de Lima. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.



[1] Citado por Plutarco em sua obra Ísis et Osíris.
[2] Cujo nome deriva de Ganga, uma deusa. (CAMPBELL, 1999, p. 179)
[3] Grifo do autor.
[4] Grifo do autor.

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