sexta-feira, 6 de abril de 2012

A Deusa de dez mil nomes - Parte II*

A dádiva da Deusa

E qual seria a dádiva da Deusa? Este presente não se restringe mais à terra nem ao planeta, mas a toda e qualquer forma de vida e de morte. Incluem-se aí as dádivas tanto microcósmicas quanto macrocósmicas. O conhecido e não conhecido, o visível e o invisível. Para além do caráter criador humano, o caráter criador universal. Sem a potência feminina não há criação. Como Campbell (1999) observou, na Índia a criação é simbolizada pela união entre o lingam e a yoni, o falo e a vagina, o Deus e a Deusa, a potencia masculina, geradora, e a potencia feminina, manifestadora.
Como você vê, o mistério sexual, na Índia, como em quase todo o mundo, é um mistério sagrado. É o mistério da geração da vida. O ato de gerar uma criança é um ato cósmico e deve ser entendido como sagrado. Por isso, o símbolo que mais claramente representa o mistério do despejar da energia da vida, no campo do tempo, é do lingam e a yoni, os poderes masculino e feminino, em conjunção criativa (CAMPBELL, 1999, p. 179).
Compreendemos que a dádiva da Deusa é a vida, assim como também é a morte, pois ambas são intrínsecas. A vida se alimenta da morte. O entendimento desse postulado fica cada vez mais evidente frente às descobertas científicas atuais como as teorias da física quântica, o princípio da incerteza, a teoria do caos e dos campos morfogenéticos. A marcha da humanidade para uma visão não determinista do mundo abrirá novas possibilidades de evolução e aceitação da morte como um processo natural e tornará mais fácil o entendimento de que todo sistema vivo precisa matar para se alimentar. A partir daí, aspectos da Deusa destruidora serão reabilitados, assim como já estão sendo seus aspectos de criadora.
Kali Ma por Vineet Agaarwal
O culto à Deusa sobreviveu a períodos históricos e suas adversidades na figura da Magna Mater dos Bálcãs e do mundo grego, por exemplo. E vive em continuidade sob as suas múltiplas formas e inúmeros nomes. Riane Eisler em seu livro O Cálice e a Espada (1989) afirma que é possível perceber esta continuidade religiosa em deidades tão conhecidas quanto: Ísis, Nut e Maat, no Egito; Isthar, Astarte e Lilith, no Crescente Fértil; Deméter, Core e Hera, na Grécia; e Atárgatis, Ceres e Cibele, em Roma.
Mesmo depois, em sua própria herança judaico-cristã, ainda podemos identificá-las na Rainha dos Céus, cujos arvoredos são queimados na Bíblia, na Shekhina da tradição cabalística hebraica e na Virgem Maria Católica, a Sagrada Mãe de Deus (EISLER, 1989, p. 33).
Uma das explicações claras para essa continuidade da Deusa ao longo da trajetória humana, mesmo que em alguns momentos Ela pareça não estar presente no imaginário religioso da humanidade, é encontrada na filosofia das religiões consagradas à Deusa na Índia, onde segundo Campbell, a simbologia Dela é dominante até hoje. Maya como é chamado o divino feminino, é o espaço e o tempo, e o mistério para além Dela é o mistério para além dos pares de opostos.
Assim, não é masculina nem feminina. Nem é nem deixa de ser. Mas tudo está dentro dela, de modo que os deuses são seus filhos. Tudo que você vê, tudo aquilo em que possa pensar, é produto da Deusa (CAMPBELL, 1999, p. 177).
Sua continuidade aparece em função dos estágios psíquicos humanos que Campbell afirma serem melhor explicados pelo sistema existente na
Os sete principais centros energéticos, sendo o último
o do topo da cabeça (chákra da coroa).
 Índia, que descreve os estágios do desenvolvimento espiritual humano. Esse sistema considera que ao longo da coluna vertebral existem sete centros de energia, chamados de Chakras, e eles são os estágios pelos quais passa a consciência do homem rumo à expansão. Tomando os quatro primeiros é possível explicar a metáfora do nascimento virginal. O primeiro chakra localiza-se entre o reto e o aparelho reprodutor e se refere aos processos de sustentação da vida, entre eles o da alimentação. Segundo Campbell ele seria representado pela serpente em seu aspecto de devoradora e renovadora da vida.
O segundo chakra é representado pelo aparelho reprodutor, significando a necessidade da procriação; o chakra logo acima se localiza na altura do umbigo e concentra a vontade de poder, domínio e realização, como também o desejo de dominar, conquistar e subjugar os outros. Segundo o sistema hindu, essas três funções: alimentação, procriação e domínio/conquista, são todas de instinto animal, e seus centros estão localizados na bacia pélvica. O quarto centro se encontra na altura do coração, onde está a abertura para a compaixão. Passa-se assim, a partir desse ponto, do campo da ação animal para o campo da ação propriamente humana e espiritual.
E para cada um desses quatro centros é imaginada uma forma simbólica. Na base, por exemplo, onde se encontra o primeiro centro, o símbolo é o do lingam e a yoni, os órgãos masculino e feminino, em conjunção. E no centro do coração aparecem outra vez o lingam e a yoni, ou seja, os órgãos masculino e feminino, em conjunção, mas aqui representados em dourado, para simbolizar o nascimento virginal, quer dizer, o nascimento do homem espiritual a partir do homem animal (CAMPBELL, 1999, p. 184).
Desse modo, o nascimento virginal tanto do homem quanto de um deus imbuído de compaixão se dá no nível do coração, como assim foi com Buda, nascido do flanco de sua mãe (entendido como do chakra cardíaco) e com Cristo, nascido de uma virgem. Metáforas para o nascimento espiritual de ambos. Segundo Campbell, os três chakras inferiores não devem por isso ser entendidos como obstáculos a serem recusados, mas transcendidos, subordinados ao coração.
O nível do coração é o espaço de ação da compaixão, mas também da maternidade, por isso bem representado por Maria, Mãe de Deus, por Ísis com seu filho Hórus, Deméter e sua filha Core, e todas as Deusas Mães da mitologia, que se doam sempre em favor do outro, que sofrem com o outro, significado da compaixão. No entanto, nos lembra Campbell, antes da imagem bíblica da Virgem Maria, temos a imagem mítica de Ísis amamentando Hórus, fonte da qual os padres do cristianismo beberam a metáfora da Madona.
Também Lúcio Apuleio (apud CAMPEBLL, p. 189), em seu célebre livro O Asno de Ouro, escrito no século II a.C., faz uma das mais famosas reverências a Ísis como a Deusa que encarna todas as formas do feminino divino. O protagonista da trama é transformado em asno graças as suas aventuras penosas e humilhantes e só consegue voltar a sua forma humana através de uma bela prece dirigida à Deusa Ísis e depois se convertendo ao seu culto.
Dessa forma, o herói do romance de Apuleio sofre um nascimento espiritual através da contemplação da Deusa. Foi a Dádiva da Deusa a ele concedida. De acordo com Campbell esse renascimento também pode se dar através dos poderes do divino masculino, no entanto, “nesse sistema de símbolos, a mulher se torna o princípio regenerador” (1999, p. 190).
A Dádiva da deusa é aquela recompensa que é dada ao herói não só ao final da sua jornada mas ao longo dela. De acordo com Campbell em O herói de mil faces (1995), a mulher representa na linguagem da mitologia a totalidade do que pode ser conhecido e o herói é aquele que aprende. Na jornada do herói, à medida que ele progride na lenta iniciação que é a vida, conhece as várias formas da Deusa.
(...) ela jamais pode ser maior que ele, embora sempre seja capaz de prometer mais do que ele já é capaz de compreender. Ela o atrai e guia e lhe pede que rompa os grilhões que o prendem. E se ele puder alcançar-lhe a importância, os dois, o sujeito do conhecimento e seu objeto, serão libertados de todas as limitações (p. 117).
Isis de todos os nomes e descrita por Apuleius.
Este encontro com a Deusa, encarnada em toda mulher, como afirma Campbell (1995), é o teste final do talento de que o herói é dotado para obter a benção do amor, a caridade, a compaixão, que é a própria vida, vivida como o invólucro da eternidade. É preciso que o herói seja dotado daquilo que os trovadores e menestréis chamavam de “coração gentil”. A Deusa não pode ser compreendida, nem alcançada, nem servida por um desejo animal, nem pela repulsa, nem pelo simples desespero. “(...) mas, apenas pela gentileza: awaré (“simpatia gentil”), eis o seu nome na poesia cortesã do Japão dos séculos X-XII” (CAMPBELL, 1995, p. 118)[1].
E assim Ísis atendendo às preces gentis e devotadas do personagem asno de Apuleio lhe diz alguns dos dez mil nomes pelos quais é chamada e dá-lhe a sua maior dádiva. E em honra Dela finalizo reproduzindo esta bela passagem:
‘Eis me aqui Lúcio. Eu vim! Teus lamentos e tuas preces comoveram-me e vim socorrer-te. Sou a mãe natural de todas as coisas, senhora e governante de todos os elementos, progenitora primordial dos mundos, chefe dos poderes divinos, rainha de todos que estão nos infernos, a principal dentre todos os que habitam os céus, manifestação absoluta, sob uma forma única, de todos os deuses e deusas (deorum dearum-que facies uniformis). Minha vontade dispõe sobre os planetas do céu, sobre todos os ventos dos mares e sobre o lamentável silêncio do inferno. Minha pessoa e minha divindade são adoradas por todo o mundo, de maneiras diversas, em costumes variáveis e sob diferentes nomes. Atento! Os frígios que foram os primeiros a dentre os homens, chamam-me Pessinunte, de ‘A Mãe dos Deuses’; os atenienses, que brotaram de seu próprio solo, Minerva de Cécrops; os cipriotas, cercados pelo mar, dizem-me Vênus da cidade de Pafo; os cretenses, que portam flechas, chamam-me Diana de Dicte; os sicilianos, que falam três línguas, Prosérpina Infernal; os que obedeciam o culto de Elêusis, adoravam-me como Ceres, sua antiga deusa; outros ainda me diziam Juno, Belone, Hécate; outros Ranúsia. Ambos os tipos de etíopes, que moram no Oriente e que são iluminados pelos matutinos raios solares, bem como os egípcios, os quais são excelentes em todo tipo de doutrina arcaica, estes estão acostumados, por força de suas cerimônias adequadas, a cultuar-me sob meu verdadeiro nome – A Rainha Ísis. Atento! Eis-me aqui a apiedar-me da tua sina e de tua tribulação. Vim para favorecer-te e ajudar-te; cessa teu pranto e tuas lamentações; afugenta a tristeza, pois este é o dia da salvação determinada por minha providência’ (APULEIO apud GRAVES, 2003, p. 93).



 Referências
ABRAHAM, Ralph; McKENA, Terence; SHELDRAKE, Rupert. Caos, criatividade e o retorno do sagrado: triálogos nas fronteiras do Ocidente. Trad.: Newton R. Eichenberg. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1994.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad.: Carlos F. Moisés. São Paulo: Palas Atena, 1990.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces.Trad.: Adail U. Sobral. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1995.
ELIADE, Mircea. Tratado de historia das religiões. Trad.: Fernando Tomaz e Matália Nunes. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
EISLER, Riane. O cálice e a espada: nossa história, nosso futuro. Trad.: Terezinha Santos. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
GRAVES, Robert. A Deusa Branca: uma gramática histórica do mito poético. Trad.: Bento de Lima. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.


Sugestão de site:
http://www.esotericarchives.com/kircher/goddess.htm

* Por Luciana Carlos Celestino.

[1] Grifo do autor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário